Entre sonhos e ventos

Todos os dias ele acorda às 6 da manhã. Com gosto de cabo de guarda-chuva na boca, não pensa que gostaria de ter a opção de não levantar. Porque não tem. A mulher  continua a dormir encolhida , como se esquivasse de algo invisível. 

Com  a mão direita limpa o vapor no espelho redondo do banheiro. E vê. Os olhos meio enviesados dão a ele um olhar de menino. O cabelo sempre curto, aparado, higienizado. Não consegue deixar de olhar para a ponta dos próprios pés, pensando que talvez um dia não os enxergue. Exatamente as 6h 30 ele desce para a cozinha e toma um café com leite, pão, geléia e manteiga. Distraidamente pega uma fruta e coloca num saco de papel.  Confere a máscara de tecido, a face shield, luvas. Abre a porta e sente nas narinas o ar frio do inverno gaúcho. Coloca a máscara e, lentamente, o carro desliza pela rua deserta. Essa imagem o remete à live que assistira na noite anterior, antes de cair ferrado no sono, de cansaço; desejando que fosse sem sonhos, sem pesadelos, sem acordar antes das 6.  O músico, seu amigo, encerrou cantando Tchau... "me despeço de todo mundo e deixo um pouco de mim aí,me despeço de todo mundo e levo um pouco de cada  um aqui", canta, espalmando a mão no peito.  Ah, se eu pudesse fazer isso, pensou. Ah, se tivesse a opção de sair pelo mundo sem tanto peso, sem tanta dor, sem tanta responsabilidade. Se pudesse voltar pra casa dos pais, se pudesse voltar a ser criança. 

Todos os dias ela acorda as 5. A água gelada que sai da torneira a acorda, mesmo que seu corpo insista em dizer que não, que não é hora. Prepara o café preto, forte, adoçado. Coloca nas garrafas térmicas, na sacola, os tupewares guardam os sonhos. Roupa pesada, touca, luvas. E máscara. Pega a bicicleta e atravessa o bairro para chegar ao hospital as 6 horas. Não gosta do inverno, tudo é mais difícil. A água gela, a massa não cresce, o café amorna. O dinheiro escasso, agora piorou muito. Antes de sair, dá um beijo no filhinho de 5 anos. Volta logo, mãe. Volto, filho. 


Nessa noite, ele não dormiu. O frio, o chão duro, a noite escura, a solidão. Não sabe bem o por quê. Em muitos momentos pensa ouvir a voz da mãe, dos irmãos, que deixou no sul do estado. Mas sabe que não, que é engano, que é loucura, que é apenas desejo. Há dias vem tossindo, dor no corpo, cada vez mais fraco.Quase não consegue fazer as artes equilibristas na sinaleira, tem derrubado os malabares, feito a reverência, passado o chapéu, mas as pessoas não abrem o vidro do carro, a sinaleira parece abrir muito depressa e ele volta à noite para o seu canto, as vezes sem dinheiro para o café com pão na padaria da esquina do hospital. 


- Bom dia,doutor - vai um cafezinho aí? Hoje tem sonhos. Quero sim, ele responde. Dá um ali para o amigo também.

Nesse instante, uma lufada de vento derruba o chapéu do malabarista, arranca a máscara do médico, vira a garrafa térmica da mulher e cala o músico.

Comentários

Clau disse…
Que texto!
Excelente.

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