Tarde



Ela nascera em cima de uma das pesadas mesas da tecelagem numa noite fria e escura de inverno. Quando sua mãe começara a sentir as dores do parto seu pai logo percebeu que nao daria tempo de levá-la a um hospital ou sequer procurar ajuda. Ela viera ao mundo num jato de água morna, entre uma contração e outra, ali mesmo, entre rolos de fios coloridos, cheiro de tinta e vapores das panelas de água que o pai pusera a ferver. Seu umbigo foi cortado, desligando-a do ser que lhe dera à luz, por uma pesada tesoura de ferro. Mariamares,  assim lhe chamaram para que tivesse o nome da virgem e também o do mar. Com o nome no plural ela teria uma vida singular. A infância passava se arrastando, como os rolos dos fios que ficavam jogados pelo chão e rolavam debaixo das mesas. Também ela rolava, brincando ora de castelos com os cones vazios, ora tecendo caminhos sem fim com os pedaços de fios que sobravam e  eram pisoteados sem dó. As primeiras letras aprendera com a mãe e logo lia os livros de historias que pareciam ter estado ali a vida toda, à espera que ela os abrisse  e, finalmente, trouxesse à vida personagens adormecidas. Mariamares se sentia como parte de uma dessas histórias. Tudo ela viveria e nada viveria.

Sentia as dores, o medo, e ao final a redenção pelo final onde os bons eram felizes para sempre e os maus queimados na fogueira. Agorasentia a alma inquieta, mas olhava ao redor e tudo parecia no seu lugar. As rocas girando, os cones esvaziando, as tecelãs tecendo tapeçarias cada vez mais belas, mais coloridas, mais perfeitas. Poucas vezes ela saíra da fábrica, não havia visto o mundo além do final da rua em frente ao casarão, mas não queria ir além.
Sua mãe atendia no balcão, fazia os pedidos, organizava o mostruário. Mariamares, desenhava, brincava com os lápis de cor e brotavam das folhas brancas de papel desenhos que se assemelhavam ao viver. Nem ela, nem a mãe, nem ninguém saberia dizer de onde vinham e como nasciam os desenhos  que Mariamares fazia. Uma tarde, só uma ou menos, foi o que bastou para mudar sua vida.

Ela não esperara, conscientemente, por ele. E aquela era apenas mais uma tarde, a não ser pelo fato de que ela estava luminosamente vestida de amarelo. Quando a luz que entrava pela porta foi obstruída pelo corpo dele, Mariamares levantou os olhos do desenho que fazia e olhou-o. Quase não conteve um suspiro de admiração. Ele era grande, pensou. Mais alto que a maioria das pessoas, moreno, corpo pesado. Ao tirar o chapéu ela percebeu que  não tinha um fio de cabelo, o que deu-lhe um sentimento de ternura imediata. Um menino, pensou. Os olhos amorosos, embora tristes, a voz tranqüila, embora forte. Seu dom, a palavra, a melodia. E ele falava como se recitasse poemas de amor, o tempo todo. Fluíam, brotavam de sua boca como se fossem dálias, rosas e jasmins.

 Mariamares cada vez mais espantada, ia colhendo, uma a uma, as melodias que ele cantava e deixava sair de dentro de si com suavidade.  Ela sentia que havia um fio invisível a tramar-se em torno dos dois, de maneira que ela só conseguiria pensar nele nos dias seguintes. À noite, deitada no escuro, ela ficava relembrando cada palavra, cada gesto, cada olhar, como se realimentasse indefinidamente daquele único encontro. Ao partir ele lhe dera um abraço entre tímido, meio apressado, meio demorado. Ela descobriu, então, que era para ele que tinha vindo ao mundo, era para ele que estava ali, que era por ele que esperara a vida toda.
Mariamares sabia que ele estava lá,  depois da última árvore, quando a rua faz uma curva e deságua no rio. Ela foi infinitas vezes até a porta, saiu para a rua, olhou para o caminho que ele percorrera, vasculhou as redondezas com o olhar dolorido, mas não mais o viu. De seus pés saiam incontáveis fios de todas as cores que iam confundindo-se com os fios perdidos pelo chão e subiam pelas mesas, pelas rocas, pelos teares e penetravam na trama fechada das tapeçarias em composição.. Mariamares estava impedida de ir, presa uma teia tecida ao redor de si, e não podia ficar porque seu coração ja não estava mais ali.

Comentários

Clau disse…
Muito bom. Um novo conto?
Lyli disse…

Sim, é a história de uma mulher que passa a vida esperando pelo amor, tão absorvida por tantas outras coisas, que quando ele chega ela não consegue desvencilhar-se de tudo e viver este amor. Talvez eu nao devesse ter dado 20 anos a ela, nesta idade não existem amarras.....
Lyli disse…
Comentei sobre isto com uma amiga e ela disse que a personagem talvez tenha pulado etapass,pelas
exigências da vida.....
Clau disse…
Parece, de forma invertida, a história do príncipe encantando. Após o beijo, vira sapo.
Quanto à idade, sei lá, mas o amor não possui datação prévia ou específica.

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