Meu bem querer.

Este conto foi escrito para um menino que existe apenas no meu coração.



Um bem

Eu tinha dezesseis anos na época.
Nós morávamos em uma casa retirada da cidade, entre árvores frutíferas e mata nativa. Tínhamos poucos vizinhos e eu adorava andar descalça e subir nas árvores. Brincava de casinha, de comidinha com um fogão de pedras e folha de lata de azeite aberta. Aos dezesseis anos eu era uma moleca.
Nosso vizinho mais próximo era uma família com muitos filhos e primos. A casa deles vivia cheia e eu sentia uma certa inveja porque sempre quis ter muitos irmãos. Eles moravam numa casa enorme. Na cozinha havia uma mesa comprida com dois bancos, um de cada lado, onde sentavam todos para o café da tarde, crianças, primos, tios. O pai e a mãe sentavam-se à ponta da mesa. Cada um tinha o seu lugar marcado.Eu evitava aparecer por lá na hora do café da tarde, mas quando ia, o Clau sempre se encolhia para que eu sentasse perto dele.
O Clau era um menino de uns dez anos e estava na quarta série. Ele era um menino franzino, um pouco tímido, mas nos dávamos muito bem. Às vezes, quando eu brincava de casinha, fazíamos de conta que ele era meu filhinho.Ele parecia gostar da brincadeira e até me chamava de "mamãe". A impressão que eu tinha era de que ele se criava meio sozinho, entre os cães e gatos que havia em sua casa.
Para chegar na minha casa eu passava sempre pela dele e ele, inúmeras vezes me esperava sentado na porteira e me acompanhava até em casa me ajudando a carregar livros e cadernos.
Eu chegava em casa por volta das 13 horas, esfomeada, jogava os sapatos para o alto e comia o almoço que minha mãe deixava pronto no forno.À tarde todos saíam e eu ficava sozinha.Tinha como tarefas lavar a louça e fazer meus deveres.Eu deitava e acabava dormindo. Muitas vezes eu acordava e lá estava o Clau, sentado no parapeito da janela, lendo gibi ou simplesmente me olhando. Nestes momentos não falávamos nada. Se eu demorava a acordar ele vinha pra cima da cama e me fazia cócegas nos pés. Eu gostava de tê-lo por perto, tinha ternura por ele. Eu adorava ler e ele tinha pilhas de gibis. Muitas vezes líamos deitados no chão de tábuas, o mesmo gibi.
Sua mãe era costureira e estava sempre ocupada, tinha muitas freguesas e muitas vezes era o Clau quem entregava as costuras prontas.
Uma tarde cheguei da escola e ele não estava na estrada de chão batido, como de costume. Nem achei estranho porque pensei que ele poderia estar fazendo alguma entrega. No caminho encontrei um de seus irmãos mais velhos que perguntou se eu não havia visto o Clau.Eu disse que não, expliquei que estava chegando naquele momento da escola. Perguntei o que havia acontecido e ele disse que o Clau estava fazendo "maroteza" e ia apanhar.
Chegando em casa entrei no quarto e, como de costume, tirei a roupa, saia azul marinho, camisa branca, sutiã, meias, ficando só de calcinha. Os sapatos já deixara na sala. Coloquei as peças de roupa na janela pra pegar um sol e me atirei em cima da cama. Estava exausta. O calor no início do verão me deixava cansada. Meu pensamento estava no Clau, onde ele estaria? O que teria feito pra merecer uma surra?
De repente ouço um ruído debaixo da minha cama e pensei que a Prin, minha gata devia estar escondida pra ganhar filhotes ali, de novo. Levantei a colcha, espiei debaixo da cama e levei um susto.Dei um grito. E ele também. Ficamos nos olhando por um momento. Nem sei quem se assustou mais. Até que levantei e disse pra ele sair dali que eu não deixaria que ninguém lhe fizesse mal. Ele estava apavorado.

Ficamos em silêncio por um tempinho, eu não queria constrangê-lo com perguntas.Tive a idéia de tomarmos banho, já que estava quente e ele estava marrom de terra e lágrimas. Não tínhamos chuveiro naquela época, só uma grande bacia de alumínio. Enchi-a de água morna e entramos pra dentro. Ficamos conversando e brincando e aos poucos ele foi relaxando. Perguntei então com quem ele fora pego fazendo "maroteza", ao que ele respondeu meio envergonhado que não era com ninguém em especial, mas com uma coisa. Pedi que me contasse, que seria um segredo entre nós.Então contou que ele e os guris da vizinhança costumavam brincar com os mamoeiros, árvore muito comum nas vizinhanças. E contou detalhes, que abriam um buraquinho e "faziam de conta" que era uma mulher. Perguntei se os irmãos dele também faziam isso, ele disse que sim, a gurizada toda fazia. Eu achei graça, mas disse a ele que não podiam puni-lo então, por uma coisa que todos faziam. Aí, ele disse que o irmão falou que já eram grandes e ele era muito pequeno.
Quando nossos dedos dos pés já estavam murchos e a água fria eu peguei a toalha e o ajudei a secar-se. Depois, deitamos na cama e ficamos conversando até que adormeci. Lembro que prometemos ser amigos para sempre e prometemos um ao outro que jamais nos deixaríamos, seríamos amigos para sempre e sempre estaríamos perto quando um precisasse do outro. Quando acordei ele não estava mais. Eu tive certeza que fora realidade e não um sonho porque ao meu lado, no travesseiro, estava um desenho que ele havia feito pra mim. Duas crianças debaixo de uma árvore e um coração. A água na bacia, o sol se pondo. Tive vontade de chorar. Muitas vezes, em minha vida, senti falta dele. Ainda hoje existe um vazio que só ele poderia preencher.
No dia seguinte seus pais se mudaram e nunca mais nos vimos. Anos depois eu o vi nos jornais. Ele tornou-se um ativista político, foi preso, torturado. Hoje é um pacato advogado perdido numa cidade grande. E eu o tenho guardado ainda hoje num lugar muito especial no meu coração. Para sempre.

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