O Segredo dos seus Olhos

Machado, em sua literatura atemporal, soube colocar muito bem em suas obras a delícia de se desvendar os mistérios femininos. Em dois momentos que lembro: Em Uns Braços, conto em que um adolescente devaneia-se com os braços de uma "senhora" de vinte e sete anos e em Missa do Galo.

"Nunca ele pôs os olhos nos braços de D. Severina que se não esquecesse de si e de tudo.
Também a culpa era antes de D. Severina em trazê-los assim nus, constantemente à mostra.Usava mangas curtas em todos os vestidos de casa, meio palmo abaixo do ombro; dali em diante ficavam-lhe os braços à mostra. Na verdade, eram belos e cheios, em harmonia com a dona, que era antes grossa que fina, e não perdiam a cor nem a maciez por viverem ao ar; mas é justo explicar que ela os não trazia assim por faceira, senão porque já gastara todos os vestidos de mangas compridas. De pé, era muito vistosa; andando, tinha meneios engraçados; ele, entretanto, quase que só a via à mesa, onde, além dos braços, mal poderia mirar-lhe o busto. Não se pode dizer que era bonita; mas também não era feia. Nenhum adorno; o próprio penteado consta de mui pouco; alisou os cabelos, apanhou-os, atou-os e fixou-os no alto da cabeça com o pente de tartaruga que a mãe lhe deixou. Ao pescoço, um lenço escuro, nas orelhas, nada. Tudo isso com vinte e sete anos floridos e sólidos. "

Isso também acontece em Missa do Galo, em que Nogueira, um rapaz de dezessete anos vai ao Rio de Janeiro para o que chama de estudos preparatórios e enquanto espera a hora da missa, estabelece um interlóquio com a dona da casa, da qual consegue entrever o bico das chinelas, o que quase o leva ao delírio.

"Voltei-me e pude ver, a furto, o bico das chinelas; mas foi só o tempo que ela gastou em sentar-se, o roupão era comprido e cobriu-as logo. Recordo-me que eram pretas."


Ontem assisti ao filme O Segredo dos Seus Olhos e fiquei pensando que não só os braços, a ponta dos pés, as mãos, mas também e, principalmente, os olhos prestam-se a revelar todos os caminhos, desejos, sentimentos e sensações não só de nós, seres humanos, mas também de todos os seres vivos. Quem não se sensibiliza com o olhar pedinte de um cãozinho? Ou com o olhar de fidalguia de alguns gatos?

Uma experiência interessante é caminhar em uma cidade desconhecida, cruzando com seres totalmente estranhos e estabelecer contato visual com eles. Olhos nos olhos, a sensação é de algumas pessoas "roubam" nossa energia, penetram nossa alma como ninguém e roubam nosso pensamento. Então, em determinados momentos, é melhor não deixar que nos olhem nos olhos. Mas em outros, é imprescindível, necessário, vital que olhemos nos olhos, que bebamos de todas as luzes, de todas as promessas e de todos os desejos.


Voltando ao filme, excetuando-se a questão política da ditadura, da tortura, da questão de se fazer ou não justiça com as próprias mãos, o belo do filme ainda é o amor guardado, a palavra não dita, o desejo escondido. É o "segredo dos seus olhos". O não descoberto, o não vivido. E por isso, tanto Machado, lá no século XIX, quanto o cinema argentino ou um blog desconhecido, num espaço virtual e semi-secreto, aqui no século XXI, retomam a questão do secreto, da luz e dos segredos dos olhares.

E assim, era uma vez...

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