Órfãos

Um amigo lembrou que Moacyr deixou viúvas a literatura gaúcha e a medicina, numa comparação feliz. Penso que deixou também inúmeros órfãos. Não somente os leitores, mas também as personagens. Ao nascimento de uma personagem ela mostra quem é, tem personalidade, emoções, cria, sofre, ama, morre. E interage com as pessoas que as leem e conhecem através das suas histórias. E existem aquelas que não se contentam em surgir em apenas uma obra e vão transitando por uma e por outra, às vezes apenas de leve, sugeridas de forma que podemos entrever seus pensamentos, suas ideias. Às vezes de forma marcante, em que sua personalidade não se insinua, mas se impõem. Todas elas lá, dentro dos livros, esperando o momento exato em que um leitor sinta aquele desejo incontido de conhecê-las, e abra o livro e comece um relacionamento de amor ou de ódio.


Moacyr Scliar foi um escritor completo: transitou tranquilamente entre romances, contos, crônicas, ficção infanto-juvenil e ensaios. E poesia, sim, por que não? Quem pode dizer que a poesia não está presente em "um sonho no caroço do abacate", por exemplo. De forma simbólica, o caroço do abacate guarda os sonhos que ficaram na infância da senhora Stern, judia que deixou o seu país por causa da guerra e sonhava comer abacate, fruta cara e inacessível. O livro trata de outras questões pontuais, como a amizade, o preconceito racial, ética e amor.


Existem semelhanças entre o escritor e o médico. Ambos possibilitam o nascimento dos seres e cuidam para que cresçam de forma saudável, preservam a vida. Eu diria que Moacyr Scliar foi um médico de corpos e almas. Ele soube cuidar do corpo, do físico, daquilo que é visível e palpável. E o fez de maneira primorosa, dedicada, pensando nas populações; era médico sanitarista. Como escritor era um observador da existência humana. E a partir da sua sensibilidade de menino judeu, nascido e criado em Porto Alegre, foi aproximando letras, tecendo textos, compondo histórias sobre o ser humano e suas minúcias, revelando o preconceito étnico racial.
Hoje os gaúchos estão órfãos. Moacyr Scliar nos fará falta, como médico, como escritor e como o grande ser humano que era.

Comentários

Anônimo disse…
Pois é, todas as segundas ele entrava em casa, sentava na sala eu eu curtindo suas crônicas sempre baseadas em fatos concretos, transformados em literatura, boa literatura, com uma indispensável dose de humor, ironia e mesmo filosofia popular. Todos estamos órfãos.
Lyli disse…
Ele tem um livro maravilhoso "Um país chamado infância". Vários contos que fala do relacionamento entre pais e filhos....lindos, impecáveis. Retrata bem o que sentimos enquanto pais e filhos. Ou mães.

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