Em outro lugar


Casada há três décadas com um homem vinte anos mais velho, ela era feliz, de uma felicidade morna, tranqüila. Nao havia mais questionamentos  e descobertas entre os dois, eram amigos.  Passaram por  momentos difíceis quando se conheceram em plena ditadura argentina, no final dos anos setenta.  Não tiveram filhos e ela sentia-se uma espécie de filha mais nova de seu marido, que era viúvo.

Ele, um militar conservador, oriundo de uma família tradicional da região de Mendoza, viera para Buenos Aires ainda na infância.  Ela cursara Arquitetura na UBA e trabalhara para um escritório  que prestava assessoria às grandes empresas da área. Não se considerava empreendedora, por isso preferia ser dirigida por um chefe. Uma única vez projetara um loft de forma independente. Lembra que sentira uma alegria quase infantil ao se dar conta de que podia fazê-lo. Seu marido lembrou-lhe que ela não precisava disso, aliás, nao precisava trabalhar se não quisesse, o que era motivo de discussão entre os dois. Ela gostava, mais do que de trabalhar, de estar perto das pessoas. Saia de casa, conversava e dava longos passeios sozinha pelas ruas de Buenos Aires. Tinha predileção pelo Puerto Madero por sua atmosfera londrina em plena capital portenha.  Abandonado durante muito tempo, o Porto tornou-se ponto de encontro da boemia argentina. Ela fazia longas caminhadas às margens do rio e comprazia-se com o ar gelado das manhãs de outono. Retornava à tardinha e sentia uma inquietação interna ao sentir a luz do final de tarde  entrar pelos vãos das venezianas. Entao, olhava-se no espelho pesquisando vestígios da moça que fora um dia e sentia-se culpada ao ver o tom rosado nas faces provocado pelo vento gelado. Um paradoxo pensava ela.

Agora, aos cinqüenta e três anos, ela trabalhava meio período na Galeria de Arte Marier, no bairro Belgrano, com vários artistas associados, a que ela se dedicava com prazer. Estar entre as obras de arte  e poder compartilhar das  ideias  desses jovens artistas lhe dava uma sensação de saciedade.


Rodrigo entrou pela primeira vez na galeria quase por acaso.Procurava uma livraria próxima dali e entrou pra pedir uma informação. No momento havia uma exposição de Mário Moralli, pintor figurativo. Suas telas, em que homens e mulheres cor de cuia e com grandes sombreros brancos faziam atividades cotidianas, chamou a sua atenção. Conversaram sobre essa e muitas outras exposições futuras. Ele trabalhava na Aerolineas Argentinas como gerente de operacionalizaçao e sempre que estava na cidade ia até a galeria para ver as exposições e conversarem. Trocaram telefones, endereço de email. Ficaram amigos. Um dia ele a elogiou, disse que tinha uma boca linda. Ela sentia a sua ausência.  Combinaram de se encontrar fora dali para um café.  Ela foi ao encontro, ele não apareceu, tivera um imprevisto na última hora. Depois, ele a esperou e ela não teve coragem de ir. No seu íntimo sabia que seria como um voo proibido, uma porta secreta que ela estaria abrindo. Embora tivessem muitas afinidades e parecesse que sempre se conheceram, ele era mais jovem que ela e isso a incomodava.
Mas ela sabia que teria que ir. As paredes e o ambiente da galeria formavam uma teia ao redor deles. Ao mesmo tempo em que se sentiam protegidos pela conveniência e suas conversas transitassem por intimidades,   sentiam-se estranhamente formais.

Encontraram-se num  lugar delicioso para arquitetos e amantes da arte; no cemitério da Recoleta, muito freqüentado por turistas do mundo inteiro. Abraçaram-se num misto de entusiasmo e constrangimento. Saíram a caminhar entre os pequenos prédios e monumentos que revelam-se também em obras de arte do cemitério da Recoleta.  Entre o túmulo de Evita Peron e Liliana Crociati de Szaszack, dois dos túmulos mais visitados, ele pegou sua mão, ao que ela correspondeu, entrelaçando os dedos com ele. Depois , encostou-a na parede  fria, sem deixar espaço para esquivos e olhou-a nos olhos, beijou-a no pescoço, enquanto acariciava seu rosto. Ela sorria e pensava há quanto tempo não sentia isso. Ele acariciava suas costas com firmeza e ela se arrepiava como um dos gatos que montam guarda junto ao túmulo de Liliana.  Ela olhou para o lado e viu um casal de namorados se beijando. Algumas pessoas passavam e ninguém parecia notá - los. Ela pensava no que aconteceria se seu marido soubesse e pensava em como era bom estar ali com aquele homem menino a beijar-lhe a boca com paixão, o desejo aflorando em ambos.
Ela pediu-lhe trégua, contou-lhe que sempre quisera casar com um homem mais velho que a protegesse das dores do mundo, que era feliz assim. Ele disse que não, que ela nao queria se esconder do mundo, que ela queria mais, que ele via isso nela, nos seus olhos, no seu desassossego.

Na saída do cemitério sentaram num banco. Ele deitou a cabeça no colo dela e fechou os olhos. Ela ficou acariciando seus lábios com o dedo indicador e pensando o quanto queria fazer amor com ele. Ele precisava estar no aeroporto as 9 e deixou-a próximo de casa. No jantar, o marido comentou com ela que a carne não estava tão macia. Ela respondeu distraída  que reclamaria com o açougueiro. Tinha na retina a figura   de um homem e uma mulher, em outro lugar.

Comentários

Anônimo disse…
Ainda não tenho como me manifestar. Somente espero que o texto não seja deletado do blog, como outros.
Clau disse…
Trata-se de um texto muito reflexivo. É um conto? Me parece que sim. Tem personagens, dois deles muito bem caracterizados (marido e mulher), mais o Rodrigo e, evidente, uma trama, face ao que ocorre entre a mulher e Rodrigo.
A grande reflexão talvez diga respeito ao casal. Fica a impressão de que o interesse recíproco murchou, feneceu, exauriu-se. Talvez num processo que começou com dias, depois semanas, meses e anos. Que passassem a viver apenas como amigos, companheiros, bem, ouve-se falar de muitos casos assim.
Mas, tratando-se de duas pessoas relativamente novas, saudáveis, será que nenhum dos dois sentiria mais nada? Por que não procurar fora do lar o que já não existia? Conformar-se a esta verdadeira condenação, qual seja, a solidão a dois? Em uma das primeiras frases, afirma-se que ela era feliz. Será? Uma mulher que não é olhada, admirada, que dorme com um homem como se fosse sua filha, sem nenhum carinho, contato táctil, nada???
Parece mais uma mulher infeliz, atormentada, insatisfeita, carente e que, claro, poderia ser conformada com a situação, mas feliz, é pouco crível.
E o marido, aos 73, ainda deveria possuir virilidade, vontade de, ainda que não fosse com sua mulher. E ele não teria receio de uma possível e provável traição, em uma situação destas?
O aparecimento de Rodrigo mostra o total irrealismo da suposta felicidade da mulher. A atração é enorme e irreversível. Nota-se claramente que um simples toque de dedos ou mãos de Rodrigo seria o bastante para deixá-la totalmente arrepiada, ainda que dentro de um cemitério, em público, na presença de inúmeras pessoas. Tornara-se incontrolável, qual uma gata (segundo a autora) no cio (pode-se acrescentar).
Logo depois, ela está aparentemente em casa, supostamente com o marido, às voltas com um bife tido como duro, mas ela claramente não está ali, nem percebe o marido, não janta e nem come nada, nem tem lábios ou boca para bifes.
Ela vive intensamente Rodrigo, pensa Rodrigo, deseja de forma intensa Rodrigo, seus lábios ardem de desejo pelo "bife" Rodrigo, enfim só pensa e imagina Rodrigo, com tudo a que tem direito.
Não há um final explícito, feliz ou infeliz (ou mesmo "unfinished"), mas a autora faz o leitor pensar, partindo do pressuposto que ele, leitor, saiba do que é capaz uma mulher apaixonada.
Clau disse…
Tentei ser conciso, para não superar o número de caracteres permitido.
Lyli disse…
Obrigada pelos comentários, Clau. Tentei caracterizar as personagens colocando-as em um determinado espaço e tempo, diferentemente do que fiz nos contos anteriores. Não acha que exagerei nessa caracterização? Usei de informações técnicas e outras que adquiri em minha viagem a Buenos Aires. Estive em frente ao túmulo de Liliana, fiz fotos, escrevi sobre isso em outro momento aqui no blog.
Creio que não podemos capturar com exatidão os sentimentos das personagens, elas nos escapam. Algum autor já deve ter escrito sobre isso ,náo? Elas vão criando vida própria e fogem de nossa vontade.
Ainda, penso que a fixação da mulher em Rodrigo , como tu bem sinalizou, pode trazer-lhe uma grande decepção amorosa, porque ela tem uma percepção ingênua de quem é realmente essa pessoa. Ou não.
Clau disse…
Tinha mais coisas a dizer, mas fiquei receoso de estourar o número de caracteres. Amanhã, se der, digo, se for possível (ô língua), escrevo mais alguma coisinha.

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