Na rodoviária

Ele estava esperando chegar o horário de seu ônibus para o interior, de onde viera para visitar a filha e o neto. A mulher ficara, afinal, alguém tinha que cuidar da casa e inibir possíveis visitantes inesperados no final de semana. O interior não oferece mais a segurança de anos atrás. Aos setenta e um anos ele se sente um pouco perdido, como se não houvesse mais nada a descobrir, nada a acontecer, a não ser esperar a morte chegar. A velhice chegara de mansinho, sem fazer alarde e fora se instalando inexoravelmente.A dificuldade em enxergar, a lentidão dos movimentos impedindo até o prazer do banho. O sexo flácido, encolhido, parecendo tímido, cada vez menor. A falta de desejo pela mulher, ela também sentindo o peso dos anos. Na adolescência faziam amor pelos cantos,numa urgência desesperada. Agora isso. Na rodoviária, ele estava alheio ao movimento das pessoas que passavam com pressa em direção aos terminais de ônibus no final de domingo. Sentara de forma a ficar de frente para uma lanchonete onde havia uma televisão ligada no programa do Faustão. Só conseguia ver as imagens e imaginava os previsíveis diálogos, afinal esse era o programa de domingo em sua casa. Foi quando ela passou à sua frente e sentou-se ao seu lado. Estimulado pelo sentido olfativo ele olhou-a. Calculou que tivesse uns 45 anos, talvez mais. Cabelos escuros, presos num coque. Alguns fios rebeldes soltando-se na nuca, despretensiosamente. Blusa verde, saia cinza, acima dos joelhos. Sandálias de duas cores, dourado e marrom, destoando da sisudez do traje bem cortado. Distraidamente ela esfregou o tornozelo. Hipnotizado ele olhou aquele gesto, imaginando se estaria com dor. A mão dela subia e descia pela panturrilha em direção ao pé. A pele morena, brilhante, lembrou-lhe os potros que corriam ao sol num sítio onde passara as férias quando guri. Ela voltou medianamente o rosto para o lado dele, que percebeu os olhos verdes, da cor da blusa. Os lábios bem desenhados, carnudos, pintados com um batom num tom mais rosado que a boca. Uma cor que as mulheres chamam de "cor de boca". Estavam em silêncio, embora lado a lado. Ela também esperava um ônibus, ele conjeturou. Com a passagem na mão, virava de um lado e outro,num gesto de impaciência. Ele observou as unhas pintadas de vermelho, uma pulseira de ouro no pulso esquerdo e um anel com pequenas pedrinhas brilhante no dedo anelar da mão direita. Ela evitava olhar para a televisão e na posição em que estava ficava quase na frente dele, obrigando-o a olhar para ela se quisesse ver o que se passava na telinha. Ele passou a mão nos cabelos ralos, num gesto de desalento. Pensou em puxar assunto, falar do tempo de espera, do clima, da chuva que assolara a cidade mais cedo da tarde, do calorão. Quem sabe ela olharia nos olhos dele, o enxergaria, sorriria e ele se sentiria jovem outra vez, teria desejos e isso seria bom. Pensava nisso ainda quando ela levantou-se e caminhou rapidamente em direção a algum ônibus, sem olhar para trás.

Comentários

Clau disse…
Sabe, você está criando um estilo, muito seu, todo seu. E que exige de seus leitores alguma reflexão e várias releituras, antes de opinar. Tento imaginar o que há de comum entre "As Chaves", "Na Fila do Caixa" e "Na Rodoviária". No primeiro, um banco de jardim, no segundo, um supermercado e, no terceiro, uma estação rodoviária. Elementos banais, próprios do cotidiano. Prosaicos (como saiu na Folha de São Paulo de ontem, a respeito das crônicas de Paulo Mendes Campos, que parece estar sendo redescoberto como um grande escritor). E é nesta rodoviária que aparece o protagonista igualmente banal. Aparentemente velho, desiludido, sem amor ou equivalente, condenado a uma rotina massacrante de uma vida solitária (a dois, o que é pior), a um relacionamento sem açúcar nem afeto e às baboseiras do Domingão do Faustão como elixir intelectual das tardes de domingo. Um filho ainda pode servir de consolo ou mais desconsolo ainda, pois logo logo criará asas e va i ter vida própria. E é neste ambiente de um morto-vivo semovente que surge um "rabo-de-saia", quase sempre um acepipe presente nas histórias simples de pessoas simples. E eis que a protagonista é um pitéu. Ou viável, como dizia o Haroldo. Não uma garotinha adolescente toda coquete e empinadinha, mas uma mulher feita que, como dizia o Vinícius, tem algo de triste, algo de belo, aquele molejo de amor machucado. E é o suficiente para que o senhor se sinta criança, notando que a mulher completamente completamente pode fazer com que ele fique com vontade de. Por um instante, não mais que um instante (já ouvi isto). Porém, de forma abrupta e totalmente ex abrupto um ônibus, um banal e prosaico ônibus faz com que desapareça o fulgor de seus olhos, a efêmera sensação de ilusão.
A primeira sensação é de que o final aproxima-se da tragédia. Ou seria a coisa mais simples e natural uma mulher tomar um ônibus?
Ainda preciso reler mais.
Lyli disse…
Desprezo ao homem comum é o título de hoje de uma crônica de Carlos Heitor Cony, na Folha. Por uma coincidência incrível, trata-se da tese que desenvolvo sobre os contos comuns de fatos comuns e pessoas comuns. No entanto, Cony é consagrado jornalista e escritor, membro da ABL, com várias obras consagradas.

Transcrevo a parte final da crônica:




O homem comum pouco aparece nas diversas mídias tradicionais, com exceção, talvez, dos desabafos e ressentimentos despejados na internet. Na semana passada, soube de um caso que não foi noticiado, talvez pelo fato de ser comum e com personagens comuns. Uma doméstica de 22 anos foi estuprada pelo filho do patrão e engravidou.

Ela se virou como pôde até chegar a hora do parto. Um motorista de praça rodou com ela por vários hospitais, até que encontrou um que a aceitou. Teve a criança na pia da cozinha hospitalar. O filho nasceu, a mãe morreu por infecção.
Lyli disse…

Nelson Rodrigues faria disso uma peça que, certamente, seria proibida pela censura. Walmor Chagas preferiu ir embora.

(grifos meus)



Pois bem, na literatura encontram-se exemplos exíguos de coisas comuns e personagens idem. Recordo de Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus, uma catadora de lixo que resolveu descrever seu dia-a- dia, na década de 60. E, de Saramago, Sobre Todos os Nomes, de um simples funcionário que procura saber quem é uma desconhecida protagonista. A trama, ainda que muito bem elaborada, não trai a simplicidade.

No mais, tudo pode ser resumido na crônica do Cony: Desprezo ao homem comum. Quase todos os escritores valem-se de personagens ricos, poderosos, inteligentes, atraentes, enfim, excepcionais, homens e mulheres. Machado de Assis, por exemplo. Brás Cubas amou Marcela 15 meses e 11 contos de réis e, posteriormente, montou casa para viver seus amores com Virgília, casada com importante prócer político, obviamente, linda, atraente e insaciável, que torna-se amante teúda e manteúda de Brás Cubas. Rubião, de Quincas Borba, recebe uma polpuda e inesperada herança, passando a freqüentar a Corte e desenvolver um amor unilateral e doentio pela bela, atraente e irresistível Sofia, também casada (como Virgília) e que aproveitava-se do dinheiro de Rubião. Bento Santiago, D. Glória, Tio Cosme, Isaura e José Dias (Dom Casmurro), viveram toda a vida às custas da herança do finado pai de Bentinho. Nunca trabalharam, nunca participaram de quaisquer ati vidades econômicas e sociais, enfim, a Casa de Matacavalos poderia muito apropriadamente ser cognominada de O Solar dos Vagabundos. E, afora isto, D. Glória ainda fazia obras de caridade e ajudou o Tartaruga (apelido do pai de Capitu) em momentos difíceis. Quanto à Capitu, é definida, em sua adolescência, como uma “mocetona”.
Lyli disse…
E o Dr. Simão Macamarte, de O alienista? No primeiro parágrafo já é descrito como filho da nobreza da terra, o melhor médico de todos os tempos de Portugal e Espanha, considerado pelos monarcas de Portugal e Brasil.

A quase totalidade da obra de Shakespeare trata do Poder e da luta pelo mesmo. Tramas quase sempre complicadas tendo como personagens monarcas ou candidatos a. Camões descreve a epopéia de Vasco da Gama em sua viagem em busca do caminho das Índias.

Os exemplos seriam infindáveis, como o Fidalgo de La Mancha, a virgem dos lábios de mel (Iracema), a mais que sensual Marina (Angústia, do Graciliano), que leva Luiz da Silva a um assassinato. E pegue-se o atual sucesso de Millenium. Um tio podre de rico que quer porque quer encontrar uma sobrinha, viva ou morta, que era tida como filha, o super Michael Blomkvist, inteligentíssimo repórter que aceita a missão, com a ajuda da hiper-hacker Lisbeth Salander, hiper-complicada e com uma trama que....e aí vem a pergunta? Onde estão os fatos banais, os homens comuns e as histórias simples do cotidiano?

Na Rodoviária traz o leitor ao chão, à realidade, às voltas com pessoas e fatos verossímeis. O desfecho é realmente muito rápido, restando a sensação de que o saldo do encontro, para o homem, foi uma espécie de Águas de Março (É a promessa de vida no teu coração). Ainda que rápida e fugidia, mas promessa...


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