Maria
Vou chamá-la de Maria. Nos primeiros dias em que a vi pareceu-me estar simplesmente à espera de alguém. Roupas limpas, arrumadas, bolsa a tiracolo, cabelos presos em um coque. Quando nossos olhares se cruzavam, ela me olhava com olhar desinteressado, sempre altivo. Uma mulher jovem, rosto liso, quieto, olhos tristes. Com o passar dos dias parecia continuar esperando alguém que ela sabia que não viria. Perambulava pelas vitrines, olhava alguma coisa com curiosidade, ficava espiando através da vidraça, o noticiário na televisão no saguão do hotel. Cruzei com ela em vários momentos, sentada na calçada, sobre o ar condicionado que fica pendurado no rés da calçada de manha muito cedo ou deitada à beira de uma janela, já no escuro da noite. Algumas vezes a ouvi cantando, uma voz suave, quase inaudível. Outra vez a vi sentada com as pernas cruzadas, como se estivesse meditando. De vez em quando tinha nas mãos uma bíblia surrada. Um dia, aproximei-me como quem não quer nada e perguntei seu nome. Como ela parecera não ter ouvido, repeti e repeti. Ela não se virou para me olhar, entendi que não queria responder, não queria conversar. Não havia confiança entre nós, não havia motivos para ela dizer-me seu nome.
Outras pessoas vivem e dormem no entorno do hotel
onde eu estive. Crianças, poucas. Alguns adolescentes e vários adultos.
Conversando com um moço que trabalha no hotel e que, de vez em quando alcançava
café para Maria, ele disse que em João Pessoa há atendimento às crianças
e para tirá-las das ruas, mas não há nenhum olhar para os adultos.
E penso em Machado e naquela frase que é a minha
carta na manga no jogo existência:
"O menino é o pai do homem".
Deve-se cuidar das crianças, porque elas são pequenas, pais e mães dos adultos
que virão, mas se isso não acontecer, quem cuida dos adultos abandonados
afetivamente? Que cuida dos adultos que fugiram de casa, que saíram pra comprar
cigarros na esquina e nunca mais voltaram? Quem olha para os mendigos, os abandonados,
os desvalidos, moradores de rua, os mentalmente perturbados? Os adultos
autistas, esquizofrênicos ou simplesmente os infelizes?
Uma manhã, quando saí do hotel , a polícia estava
lá, com celular na mão, com aparelho de dar choque, com cassetetes. Algumas
pessoas conversavam e me aproximei porque vi que ela estava lá, a Maria,
sentada, alheia a tudo, um sorriso enigmático com que contemplava os
espectadores curiosos. Enquanto ela aguardava silenciosa, uma mulher comentava com voz
esganiçada que “ela era doida mesmo porque picara dois reais”. Outra segredou
que ela ficara assim depois que fora abandonada pelo marido, mas sua tristeza
aumentara muito quando o conselho tutelar arrebatou seus filhos. Refleti que os
dois reais não eram importantes pra ela. Talvez ela quisesse atenção, carinho,
seu marido, seus filhos de volta. Talvez quisesse a sua casa, seu pedaço de
chão, seu lugar no mundo, o retorno de sua dignidade.
Por mais que minha imaginação divague e especule, jamais saberei quem
era ela e o que a levou a ficar assim, à deriva. O que me leva a outra questão:
o que realmente fazemos pelas pessoas que estão próximas a nós, as que cruzam o
nosso caminho. Para que realmente existimos? Qual é a diferença que fazemos na
vida das pessoas?
Soube dias depois que a levaram para o interior, para o sertão, para o
local provável onde ela vivia.
A ausência deixada por ela me entristeceu. Por ela, e por todos nós,
enclausurados em nossas mazelas, com nossos fantasmas a nos atormentar, num
mundo de solidão.
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