Declaração de males



Declaração de males
Paulo Mendes Campos

Ilmo. Sr. Diretor do Imposto de Renda.Antes de tudo devo declarar que já estou, parceladamente, à venda.Não sou rico nem pobre, como o Brasil, que também precisa de boa parte do meu dinheirinho.Pago imposto de renda na fonte e no pelourinho.Marchei em colégio interno durante seis anos mas nunca cheguei ao fim de nada, a não ser dos meus enganos.Fui caixeiro. Fui redator. Fui bibliotecário.Fui roteirista e vilão de cinema. Fui pegador de operário.Já estive, sem diagnóstico, bem doente.Fui acabando confuso e autocomplacente.Deixei o futebol por causa do joelho.Viver foi virando dever e entrei aos poucos no vermelho.No Rio, que eu amava, o saldo devedor já há algum tempo que supera o saldo do meu amor.Não posso beber tanto quanto mereço, pela fadiga do fígado e a contusão do preço.Sou órfão de mãe excelente.Outras doces amigas morreram de repente.Não sei cantar. Não sei dançar.A morte há de me dar o que fazer até chegar.Uma vez quis viver em Paris até o fim, mas não sei grego nem latim.Acho que devia ter estudado anatomia patológica ou pelo menos anatomia filológica.Escrevo aos trancos e sem querer e há contudo orgulhos humilhantes no meu ser.Será do avesso dos meus traços que faço o meu retrato?Sou um insensato a buscar o concreto no abstrato.Minha cosmovisão é míope, baça, impura, mas nada odiei, a não ser a injustiça e a impostura.Não bebi os vinhos crespos que desejara, não me deitei sobre os sossegos verdes que acalentara.Sou um narciso malcontente da minha imagem e jamais deixei de saber que vou de torna-viagem.Não acredito nos relógios... the pule cast of throught... sou o que não sou (all that I am I am not).Podia ter sido talvez um bom corredor de distância: correr até morrer era a euforia da minha infância.O medo do inferno torceu as raízes gregas do meu psiquismo e só vi que as mãos prolongam a cabeça quando me perdera no egotismo.Não creio contudo em myself.Nem creio mais que possa revelar-me em other self.Não soube buscar (em que céu?) o peso leve dos anjos e da divina medida.Sou o próprio síndico de minha massa falida.Não amei com suficiência o espaço e a cor.Comi muita terra antes de abrir-me à flor.Gosto dos peixes da Noruega, do caviar russo, das uvas de outra terra; meus amores pela minha são legião, mas vivem em guerra.Fatigante é o ofício para quem oscila entre ferir e remir.A onça montou em mim sem dizer aonde queria ir.A burocracia e o barulho do mercado me exasperam num instante.Decerto sou crucificado por ter amado mal meu semelhante.Algum deus em mim persistemas não soube decidir entre a lua que vemos e a lua que existe.Lobisomem, sou arrogante às sextas-feiras, menos quando é lua cheia.Persistirá talvez também, ao rumor da tormenta, algum canto da sereia.Deixei de subir ao que me faz falta, mas não por virtude: meu ouvido é fino e dói à menor mudança de altitude.Não sei muito dos modernos e tenho receios da caverna de Platão: vivo num mundo de mentiras captadas pela minha televisão.Jamais compreendi os estatutos da mente.O mundo não é divertido, afortunadamente.E mesmo o desengano talvez seja um engano.
Texto extraído do livro "O amor acaba", Civilização Brasileira - Rio de Janeiro, 1999, pág. 259, organização de Flávio Pinheiro.

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