Seu Manoel


A natureza é incrivelmente bela praia na Ferrugem, em Garopaba, mas os nativos acabam revelando outro tipo de beleza, a das pessoas do lugar. De compleição magra, enxuta, são morenos (obviamente), não raro cabelos claros e olhos azuis. Assim eu conheci o Seu Manoel João da Silva, mas que poderia ser Pereira. Ele tem 73 anos, nasceu ali mesmo na praia da Ferrugem, pertinho do lugar onde o encontrei de camiseta branca, bermuda azul, botas de borracha e chapéu de palha. Eu fotografava em suas terras, à beira da lagoa, quando o vi vindo por dentro d'água, vagarosamente. Quando me viu, surpreendeu-se. Eu continuei fotografando, pensava que fosse um rapaz, mas quando ele chegou perto imaginei que fosse o dono do lugar. Eu pedira autorização ao seu filho, lá na entrada da porteira. Começamos a conversar e eu fiquei encantada por esse homem de rosto enrugado, corpo de moço e olhos claros, extremamente inteligente e sensível. Seu Manoel (Lelo para os amigos) tem uma memória incrível. Ele lembra de fatos que aconteceram quando tinha três, seis anos. Aos três, quando a irmã nasceu, ele foi cuidado por uma menina de 12 anos. Com essa menina ele dormiu por sessenta dias. Hoje ela tem oitenta e poucos anos e mora numa praia perto dali.
Sua dor maior é não ter estudado. Na época, lá por 1940, não havia professores na região. Então, com onze anos ele foi à escola pela primeira vez para aprender com uma mocinha que veio de outro lugar. Mas ela pouco sabia. E ele não foi além de ler e escrever o próprio nome. Apesar disso, seu Manoel viaja. Assim mesmo, com essas palavras, ele descreveu as experiências transcendentais que tem. À noite, quando todos dormem, ele viaja pelo espaço. E esse espaço não é só o da terra, mas do céu também. Ele gosta de tudo o que se relaciona com o espaço sideral. Gosta de saber sobre os planetas, e quando o homem pousou pela primeira vez na Lua, Seu Manoel juntou um dinheiro apertado, espichado, e comprou um radinho de pilha. Ele disse que sabia que o homem chegaria à Lua, como também chegará a Marte. Ele afirmou que o homem chegará a Marte, mas que ainda vai demorar muito e ele não vai estar mais aqui pra ver. Contou-me também que ele sempre sonhava com um lugar que descreveu como uma larga planície verdinha, coberta de um capim claro e não muito alto. No centro desse campo havia uma depressão de forma arredondada, e dentro dela, bois e vacas. Ele teve esse sonho muitas noites, mas na impressão dele, via o campo de cima, como se estivesse voando. Um dia, assistindo televisão, viu que passava uma reportagem e mostrou exatamente as imagens que ele via no sonho. Então ele descobriu que aquele lugar que o impressionava tanto realmente existia. Seu Manoel é sério, não sorriu em nenhum momento. Seus olhos são perscrutadores, indagativos. Durante nossa conversa lamentou várias vezes não ter podido estudar e disse que as pessoas do lugar não conversam com ele, debocham das histórias dele, não acreditam. Ao final, eu pedi a ele que entrasse comigo na lagoa porque não havia conseguido companhia pra isso, ele olhou desconfiado, perguntou se eu queria ir de barco ou a pé, caminhou alguns passos e disse que não poderia ir comigo porque sua mulher era muito ciumenta e se o visse caminhando comigo na lagoa ficaria zangada e ele não queria briga. Perguntei se ele era muito namorador e ele disse que fez um juramento quando se casou, em 1961. Despedi-me, prometendo voltar e levar pra ele material sobre os planetas e o espaço sideral. Ele disse que as porteiras estarão sempre abertas pra mim porque ele é o dono do lugar, mas sabe que depois dele virão outros e outros. Indefinidamente.
Conhecer Seu Manoel fez muito bem para a minha alma. Conversamos como se não tivéssemos diferenças de idade, de cultura. Conversamos como dois seres humanos que compartilham do mesmo planeta e do mesmo momento de passagem por aqui.

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