UNIVERSIDADE
FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE
DE EDUCAÇÃO
PROEJA
INDÍGENA
Maria
Antônia Soares:
A
Memória de uma guerreira indígena
Lylian
Mares Cândido Gonçalves
Artigo apresentado no Curso PROEJA
Indígena, vinculado à Universidade Federal do Rio Grande do Sul, como exigência
parcial para obtenção do título de Especialista.
Orientador: Prof. Dr. Rogério Reus Gonçalves Rosa
Porto
Alegre, junho de 2012
Maria Antônia Soares:
A Memória de uma guerreira indígena
Lylian Mares Cândido Gonçalves[1]
“A pessoa que sofreu sabe de um mistério – o mistério do mal e o
milagre da sobrevivência – e nós que escutamos podemos através dela penetrá-lo
e compartilhar do milagre”
Sommer
Resumo: A
partir da memória da cacique Maria Antônia Soares, da Terra Indígena da Linha
Glória, município de Estrela, este texto conta o início de sua vida na Gruta
dos Índios, em Santa Cruz do Sul, a expulsão desse território, o convívio com
os brancos, as parcerias estabelecidas por ela, as lutas e conquistas enquanto
mulher, mãe e liderança da sua comunidade. O texto narrado em terceira pessoa é
permeado e entremeado por informações históricas e antropológicas que se aliam
à memória e à fala de Maria Antônia.
Palavras-Chave: indígenas – memória –
narrativas – história – perdas – conquistas
Introdução
Durante o curso de
Especialização em Educação Profissional Integrada à Educação Básica na
Modalidade em Educação de Jovens e Adultos – Proposta Diferenciada para
Indígenas (PROEJA Indígena), promovido pela Faculdade de Educação da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, fomos desafiados a escrever nosso
Memorial – História de Vida, e eu descobri que na história do meu pai há um
relato de que ele foi “pego a cachorro no mato”. Isso me tocou profundamente e
me levou a refletir e a investigar quem sou eu, quem esteve na vida antes de
mim, de quem sou filha, quem foram meus antepassados. Devo reconhecer nesse
instante que pouco descobri, porque se não registramos a memória das pessoas e
o que elas narram das outras pessoas esse “fio da memória”, que tece e encadeia
as histórias de vida, se rompe e tudo se dilui no tempo.
Quando, enfim, precisei
definir o tema para o trabalho de conclusão de curso, pensei em registrar a
história de Maria Antônia Soares, uma indígena Kaingang, filha, mulher, mãe,
cacique da Terra Indígena da Linha Glória, porque as suas memórias deixam de
ser privadas para se tornarem públicas à medida que dão vez e voz à memória de
seus antepassados e do próprio povo Kaingang.[2]
Dois nomes e um sobrenome
Eu conheci uma
mulher. Ela se chama Maria Antônia.
Como outras mulheres que se
chamam Maria, ela traz no nome a gana da mulher que entrega e que espera. Como
Maria, mãe de Jesus, ela entregou seus filhos, mas não os abandonou. A Maria
também se chama Antônia, Maria Antônia. O primeiro é feminino; o segundo,
masculino. A Maria Antônia é uma índia Kaingang e o seu nome como que
representa o sistema de metades que caracteriza essa sociedade: kamẽ e kanhru. Conforme a visão de mundo dessas pessoas, kamẽ é o sol, a força, o masculino e kanhru é a lua, o frágil, o feminino.[3]
Maria Antônia é a mediação desses dois princípios em carne, osso, alma.
A Maria Antônia também é
Soares, uma das filhas do patriarca Manoel Soares, de uma numerosa parentela
Kaingang. O sobrenome Soares foi atribuído aos Guaranis, pelos portugueses após
a Guerra Guaranítica, nos aldeamentos de Cachoeira do Sul que “ganhou” esse
sobrenome dos brancos que um dia chegaram à aldeia e disseram que a partir
daquele dia “eles seriam Soares”.
A
terra, o barro, a pedra.
Por volta da década de
quarenta do século passado, o seu pai Manoel Soares empreendeu uma viagem da
região de Salto do Jacuí para Santa Cruz do Sul com duas mulheres, Dona Circe, Dona
Lídia e filhos pequenos. Em seu corpo corria sangue Kaingang e Guarani, pois
ele era filho de mãe Guarani e pai Kaingang. Dona Lídia, mãe de Maria Antônia é
filha de pai Kaingang, da família Mello, e de mãe Guarani, do Aldeamento de São
Nicolau do Rio Pardo e nos pensamentos de Seu Manoel se misturavam as duas
culturas. Como Guarani, ele caminhava em uma busca sem fim pela terra sem males.[4]
Como Kaingang ele tinha a voracidade e a resistência para a luta pela terra.
Em Santa Cruz, eles
encontraram um abrigo em uma grande gruta. As narrativas mitológicas delineiam
que na origem os Kaingang saíram por dois caminhos do interior da terra.[5]
Talvez, por causa disso, os Kaingang não cansam de dizer que “a terra é nossa
mãe”. Na gruta, Dona Lídia deu a luz à Maria. Maria Antônia saiu da terra para lutar pela terra. Como de
costume entre os ameríndios, a sua mãe cortou o seu umbigo com uma taquara e o
enterrou bem ali, próximo à gruta.
O seu pai seguiu vivendo com
três mulheres. Desses casamentos resultou o nascimento de vinte e cinco filhos.
Nem todos vingaram, alguns morreram ao nascer, outros morreram quando pequenos
de doenças causadas pelo frio. Desses, Maria Antônia tem lembrança de um em
especial, porque a mãe o pariu no hospital e disseram que nascera morto, porém
não mostraram o corpo e nem o devolveram a ela.
Quando Maria Antônia era
criança, ela brincava com irmãos e primos, todos filhos do mesmo pai. Uma dos
passatempos preferidos dela e suas irmãs era fazer bonecos de barro retirado de
um rio que cruzava próximo a gruta.
Ela também adorava deitar
sobre as pedrinhas redondas no leito raso desse rio, deixar seu corpo ser coberto
pela água fria, seus cabelos obedecerem à correnteza. Somente seus olhos e
lábios ficavam fora da água, os primeiros a fitarem o céu à procura de
bichinhos nas nuvens, os segundos para os narrarem a mim.
Naquele tempo, seus dias
eram compridos, permeados pelos barulhos da mata, pelo sol atravessando as
folhas das árvores, formando sombras que pareciam fantasmas sem fim. Nas noites
altas, os pios das K᷉akó (coruja) e o
ronco dos góg (bugio) calavam a
madrugada, fazendo com que as águas do rio adormecessem.
Durante as noites, sentados
ao redor do fogo, Maria Antônia e as estrelas ouviam as narrativas contadas por
seu pai. Histórias que falavam das caçadas do k᷉eme (veado), da k᷉akó
(coruja), do e outros bichos da mata. Manoel Soares gostava de imitar o
canto do gonvé (sabiá). A sua avó
também contava histórias, porém, ela repetia quase sempre essa: “um dia, os homens brancos chegaram à aldeia
com vários cães de caça e levaram a sua mãe. Quando ela retornou estava com o fe (peito) em frangalhos, com franjas de carnes
penduradas“. Nas palavras de Maria Antônia, a avó contava isso em uma
cantilena, em um tom de lamento, e narrava, narrava e narrava para que ninguém
nunca mais esquecesse e para que a memória de sua mãe não morresse.[6]
O
choro: o triste canto da partida
Maria Antônia foi uma criança
feliz, e parecia que nada nesse mundo mudaria isso.
Porém, em uma fria manhã de
inverno, quando ainda estavam recolhidos dentro da gruta, Maria Antônia
percebeu que algo não estava certo: o seu pai falava alto e as mulheres
iniciavam um choro baixinho. Ela e suas irmãs aproximaram-se da entrada da
gruta e viram homens estranhos, vestidos de um jeito que elas nunca haviam
visto até então, que falavam palavras que elas não entendiam. O que estava
acontecendo?
Esse grupo era liderado por
um homem grande, maior que todos os outros, ele gesticulava muito. Maria
Antônia não imaginava o que viria a seguir: a sua existência e os seus caminhos
estavam selados por aqueles homens, que estavam ali para expulsá-los do lugar
onde nasceram e viviam.
As mulheres começaram a
chorar alto, um lamento contínuo, como se fosse uma cantoria. O pai juntou
todos dentro da gruta e explicou na sua língua que eles deveriam partir dali,
que aqueles homens não queriam mais que eles permanecessem naquele lugar.
Após esse momento eles juntaram
os seus poucos pertences: poucas panelas de barro, alguns potes e as esteiras
onde dormiam. A pequena Maria Antônia lembrou que deixara sua boneca secando
próximo ao rio, no dia anterior, e nunca mais retornaria para buscá-la.[7]
Nesse momento as lembranças
daquela manhã vêm à mente de Maria Antônia como um pesadelo. Ela ainda vê o
homem de chapéu preto e olhos ameaçadores que os conduziu às caçambas dos
caminhões que os tiraram da gruta.[8]
Quando esses homens os
deixaram próximos a uma ponte, eles se sentiram aliviados, permanecendo ali até
o final do inverno. Porém, o seu pai queria criar os seus filhos na mata, na
terra onde estavam enterrados os umbigos dos seus antepassados. Então, eles
empreenderam um movimento de retorno, caminhando por dias e dias à beira da
estrada, às vezes escondendo-se na mata devido ao medo de serem novamente
colocados em um caminhão e levados ainda para mais longe.
Em uma pequena localidade
chamada Pinheiral, ao lado de uma pequena gruta onde morava uma santa, eles se estabeleceram. Ali, o pai ergueu um
abrigo com pedaços de pau e galhos de árvores. Era um lugar construído por ele
para abrigar a família. Do morro descia um curso d’água limpa e a mata lhes
dava o alimento, além da matéria-prima para o artesanato que tramavam para
vender na cidade.
A andança de uma localidade
a outra era por dias, semanas, meses, anos. Com oito, nove anos Maria Antônia
já caminhava junto para vender artesanato. Algumas mulheres diziam que somente
comprariam seus trabalhos se ela usasse as roupas que lhes davam. Então ela as colocava,
mas antes de chegar a sua casa tirava e as deixava pelo caminho. Maria Antônia
não gostava nem de roupas nem de calçados. Andar de pés descalços, pisar o chão
de terra era tudo o que ela mais apreciava.
Um dia, Manoel Soares
recebeu a visita de um parente que morava em Monte Alverne, ele noticiou que o
seu pai estava enfermo. Por dias e dias eles caminharam, acampando à beira da
estrada e, ao final de mais de uma semana, eles chegaram ao seu destino: o avô
havia morrido.
No enterro, Maria Antônia
observava tudo com curiosidade de uma criança, os homens e as mulheres choravam
quase em silêncio. Ela recorda que seu Manoel disse que o desaparecimento de seu pai era uma grande perda, que ele havia
sido um grande e sábio homem, e que por isso choravam.
O avô foi enrolado em uma
grande esteira de taquara e ali enterrado, próximo à cidade de Santa Cruz. Mais
tarde, já adulta, ela participaria da cerimônia que acomodaria os ossos dele em
um pequeno balaio e que logo depois seria colocado nas águas baixas para que
fosse levado pela correnteza e retornasse à natureza de onde um dia viera.
O
tempo do sangue
Sem que Maria Antônia
percebesse, o tempo modificava o seu corpo e um novo caminho ainda não trilhado
logo se desenrolaria à sua frente.
Eles moravam novamente em
Pinheiral. Agora eles recebiam a visita de um casal de brancos. O homem e a
mulher queriam levá-la para trabalhar em sua casa, tratá-la como filha, dar estudo, comida, cama... Ela queria se
esconder, não aparecer, desaparecer. Mas não podia, Maria Antônia era mais alta
que as demais, bonita, de longo gãnh
(cabelo) preto. E de todas, entre irmãs e primas, escolheram ela, logo ela.
Maria Antônia pressentiu em sua sensibilidade aguçada pelas adversidades que,
ao contrário de findarem suas dificuldades, seu martírio e sua luta estavam
apenas começando. Ela sabia que aos onze anos não era mais uma menina, era
adulta, já sangrava. Em um triste destino selado, sem escolha, ela foi levada
para trabalhar em um prostíbulo.
Naqueles dias, Maria Antônia
não falava português, ela não compreendia o que os brancos diziam. Ela foi
jogada em um cabaré à beira da estrada e ficou ali para o uso de quem pudesse pagar
pelo seu corpo virgem de doze anos de idade.
A primeira palavra que
dirigiu aos brancos foi para pedir água e disse goj na língua Kaingang ou ig,
falando em Guarani. Mas eles também não compreendiam o que ela dizia.
Maria Antônia não estava
acostumada a comer a comida de branco. Quando viu arroz pela primeira vez ela
pensou que fossem pequenos bichinhos. O macarrão imaginou vermes. Ela gostava
de comer kum᷉i (mandioca), pén’ó (batata),
kakan᷉e (frutas), myg (mel) e para beber kogúnh kron je (chimarrão) preparado na cuia de porongo e pipeta de
taquara.
A erva-mate era abundante na
região de Santa Cruz e Venâncio Aires, como é ainda hoje. Pequenos animais
também faziam parte da sua alimentação, como o pirã (peixe), f᷉enf᷉em (tatu) e
até o fójín (zorrilho). Os mais velhos gostavam de pitar o v᷉eju (cigarro).
Mas Maria Antônia queria
retornar para a sua casa, voltar a brincar com suas irmãs e irmãos à beira do
rio, correr pela mata, pendurar-se nos cipós e buscar a boneca de barro que
deixara sozinha próxima ao rio. Mas não havia retorno, os brancos diziam que se
voltasse, colocariam fogo na cabana de seu pai. Ela tinha medo que isso
acontecesse e, assim, foi ficando.
A
filha da dor
Um dia, Maria Antônia sentiu
que a sua barriga começou a inchar. Então, ela não serviu mais aos homens
brancos. Eles a deixaram voltar para a sua casa, disseram que ela procurasse o
seu pai.
Mas, Manoel Soares não
morava mais em Pinheiral, próximo à santinha. Em Santa Cruz ela perambulava
pelas ruas, dormia sob as marquises, comia o que lhe davam. À noite enrolava-se
em um cobertor que alguém lhe alcançava e ficava horas mirando a lua como se
esperasse respostas sobre as dores de sua alma e o seu destino. A solidão
somente seria maior se ele não tivesse a companhia dela, a Lua.
Em uma manhã coberta pela
névoa do inverno, sentindo as dores do parto, ela foi levada a um hospital.
Naquela hora ela lembrou-se de como as mulheres ganhavam seus filhos na mata:
Maria Antônia queria ter sua filha como as mulheres Kaingang, de cócoras,
protegida pelos seres da natureza, acariciada pela brisa do vento. Ela gostaria
que seu sangue se misturasse novamente às folhas que cobriam o chão e que o
umbigo de sua filha fosse cortado com taquara, como fora feito com ela, e
devolvido à mãe terra. Mas não pode ser assim, pois ela estava em uma casa
grande chamada hospital. Maria Antônia ganhou sua filha no corredor, no chão.
De tudo o que aconteceu foi o que mais se aproximou daquilo que ela sonhou
reviver.
A maternidade trouxe à Maria
Antônia uma tranquilidade nunca antes consentida. Ela queria estar na terra,
cuidar da filha, fazer artesanato em convívio com os seus. Ela não queria mais
sair de perto dos parentes. Quando sua filhinha adoeceu e os remédios
tradicionais não conseguiam curá-la ela trouxe a menina ao hospital de Lajeado.
O compadre, a quem convidara
para batizar sua filha, entregou a criança para sua irmã, que a levou embora e
não deixou mais que Maria Antônia a visse. O umbigo que ela guardara enrolado
num paninho foi enterrado na Linha Glória, em Estrela.
Durante anos ela chorou a
perda da filha, calculando ano a ano os seus aniversários, imaginando aquela
que um dia carregara no ventre e parira no chão do hospital. Se pudesse, ainda
hoje a pegaria no colo e diria a ela que não a abandonou... nem um dia!
O
prazer do jaguar fêmea
Apesar das perdas e dores
que sofreu, Maria Antônia transformou-se em um jaguar fêmea. Nos anos
seguintes, em viagens pelo Rio Grande do Sul, ela pariu vários filhos. O
primeiro filho homem teve o umbigo cortado pela “mãe véia”, com taquara, como
manda o costume Kaingang. A todos, ela ensinara o artesanato assim como seu pai
lhe educara. E no trançado do cipó, ela foi tecendo a sua história, tramando as
dores da mãe e o prazer de ser mulher.
Embora Maria Antônia tenha
vivido em vários lugares jamais ela se afastou do seu pai, de quem ouvia os
ensinamentos com toda a atenção. Embora Manoel Soares a tivesse entregue aos
brancos quando menina, contrariamente a isso, ele pedia que seus filhos não se
juntassem com os brancos, não se misturassem a eles. Ele não queria que
tivessem junções e casamentos e que desses nascessem crianças que não fossem
índios puros. Maria Antônia, dessa vez, o desobedeceu e se relacionou
amorosamente com alguns brancos.[9]
Assim como muitas mulheres,
Maria Antônia tem a sina do engano e do desamor. Tudo o que ela queria era um
marido e um pedaço de terra pra morar e criar os seus filhos. Seus homens, no
entanto, queriam mais do que isso ao esperarem dela o amor, o trabalho e o
sustento.
Maria Antônia sentia que eles
arrancavam dela mais do que estavam dispostos a dar-lhe. E assim ela seguiu
procurando seu amor. O seu mundo era o mundo, não havia fronteiras. Sempre
retornava à casa do pai que se estabelecera na Linha Glória, em Estrela. Ao
final desses encontros com os homens brancos ela não restava só porque eles lhe
deixavam um filho, mas era Maria Antônia solidão.
A
morte do pai
O pai de Maria Antônia nunca
pronunciava a palavra morte. No entanto, ele dizia a ela que se um dia ele
“fosse embora” ela deveria retornar à aldeia e cuidar da mãe e dos irmãos
menores.
Quando ele morreu atropelado
na BR 386, em 1990, ela retornou à Terra Indígena da Linha Glória para cumprir
a promessa realizada. Contrariamente ao que seu pai desejava, alguns parentes
homens indígenas não concordaram que Maria Antônia fosse a cacique. Para eles,
a mulher deveria fazer artesanato, vender, cozinhar, dando a eles o desejado fuá, cuidar dos filhos e se entregar aos
prazeres do sexo.
Mas, enfrentando a vontade
desses homens, Maria Antônia ouviu toda a comunidade e sempre pensando em
realizar o desejo de seu pai, ela assumiu a chefia política. Entre suas
conquistas está a água encanada para a comunidade. Antes disso bebiam água de
uma pequena bica à beira do asfalto ou de uma pequena sanga que captava o
veneno usado pelos agricultores nas lavouras do entorno.
De uma certa feita, diante
da reclamação de uns e outros, ela passou o cargo aos seus irmãos que, depois
de algum tempo, a devolveram. Assim, Maria Antônia permanece como a liderança
na Terra Indígena da Linha Glória, dividindo a responsabilidade das grandes
decisões com as irmãs e com os irmãos.[10]
A escola e a fumaça
Um dos sentimentos ruins de
Maria Antônia é não saber ler, nem escrever. Ela sabe apenas assinar o nome e
quem a ensinou foi um dos filhos homem. Mas isso não a impediu de travar
discussões e negociações com o homem branco, ao contrário. Ela tanto conversa
com um parente quanto com um promotor público. E talvez por saber o que lhe
faltou saber ler e escrever, ela sonhe e
lute por uma educação específica e diferenciada para as crianças, jovens e
adultos da Terra Indígena.
Quando seus filhos, ainda
pequenos, foram à escola de brancos e lá deram a eles sabonete para que
tomassem banho antes de entrar para a sala de aula, já que o cheiro de fumaça
incomodava os professores, ela decidiu que seus filhos não iriam mais àquela
escola e que era chegado o momento de terem seu próprio ensino dentro da
aldeia. Estabelecendo parcerias com educadores e simpatizantes com a causa
indígena, ela conseguiu que uma escola indígena fosse criada e construída
dentro do espaço da terra indígena da Linha Glória. [11]
Como a situação de ocupação
era de um acampamento, a escola foi construída com madeiras doadas por uma
escola estadual que havia sido desmanchada. Uma pequena casinha de madeira com
uma sala de aula, banheiro e uma pequena cozinha. Foi o começo. Apesar de não
alcançar o ideal de escola indígena, que é uma escola específica, bilíngue, com
tempos e espaços diferenciados, com uma pedagogia, professores, funcionários e
direção indígena, foi uma grande conquista da comunidade, permeada pela ação da
liderança na pessoa da cacique Maria Antônia.
E, enfim, conforme seu
desejo, agora será construída uma nova escola, a partir das compensações do
DENIT pelo impacto ambiental causado à comunidade indígena por ocasião da
duplicação da BR 386. A construção da escola será conforme as metades
mitológicas Kamé e Kainru, projeto elaborado pelo curso de arquitetura da UFRGS.
(Anexo I)
Considerações
Finais: As raízes velhas e as raízes novas
Hoje, Maria Antônia tem a
altivez e a dignidade das grandes lideranças. As suas intervenções no mundo dos
brancos são de resistência. Seu tom de voz demonstra sua força e sua
autoridade. Às vezes a tristeza escurece seu olhar e diminui a luz. Mas quando
sorri, um antigo brilho retorna aos olhos e ela lembra outra vez a Maria
Antônia menina, que corria pelas matas.
Ela enfatiza que fez o bem e
o mal, mas que ela não se arrepende de nada porque é possível errar e retornar
a acertar. Maria Antônia não se envergonha de nenhuma passagem do seu passado
e, principalmente, sente muito orgulho de ser quem é: uma mulher indígena
Kaingang, liderança de um povo discriminado, marginalizado e invisibilizado.
Da mata no entorno da terra
indígena ela retira o cipó para o artesanato e as ervas para que curem e que
matem as doenças, inclusive as doenças invisíveis.[12]
Ela é uma mulher sábia que se diz uma raiz velha. Aos cinquenta e dois anos ela
diz que já viveu que chega. Mas quer deixar uma vida melhor para a sua
comunidade, para os filhos e os netos. É eles quem importam; as raízes novas. E
uma vida melhor quer dizer melhores condições de saúde, oportunidades de
emprego, educação numa escola de qualidade, com a manutenção da língua e
conhecimentos Kaingang.
Compartilhar da memória e
dos conhecimentos de Maria Antônia significou penetrar em um universo de perdas
e danos, mas também de construções, conquistas e exemplos de determinação e
orgulho de ser quem é: mulher, mãe, avó, filha, liderança e guerreira indígena
Kaingang, norte e rumo de sua comunidade.
Referências
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Kaingang: Um estudo histórico da aldeia Kaingang da Linha Glória, Estrela –RS.
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Cosmologia Kaingang: o Xamã e o Domínio da Floresta. Horizontes Antropológicos,
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Maria José. A mãe da mãe de sua mãe e
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SIMONIAN,
Ligia T. L. Terra de Posseiros: um
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dissertação de mestrado.
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Ligia T. L. Violência entre os Kaingang
no RGS: Assassinato, Esquartejamento e Antropofagia. Laudo Antropológico
Processo Juri Nº 737-106/79. Comarca de Seberi. RS, 1994.
Anexo
II
[1] Minha gratidão à orientação sensível
e atenciosa do professor Rogério Reus Gonçalves da Rosa. Da mesma forma, a Rodrigo Alegretti Venzon
pelo convite para a realização do Curso PROEJA Indígena e tradução
das expressões em Kaingang, constantes no texto. Agradeço às intervenções e dedicação da professora
Maria Aparecida Bergamaschi, bem
como aos demais professores e colegas do curso e aos indígenas Kaingang da Terra
Indígena Foxá, em Lajeado, pela convivência e amizade, bem
como, da Terra Indígena
da Linha Glória, especialmente à Cacique Maria Antônia Soares, por ter me recebido e dado a mim a
honra de escrever a sua
história.
[2]
Nas
palavras de Curt Nimuendajú (1994, p. 58): “A tradição dos Kaingang conta que os primeiros desta
nação saíram do chão, por isso eles têm a cor da terra. Numa serra no sertão de
Guarapuava, não sei bem aonde, dizem eles que até hoje se vê o buraco pelo qual
eles subiram. Uma parte deles ficou em baixo da terra onde eles permanecem até
agora, e os que cá em cima morrem vão se juntar outra vez com aqueles. Saíram
em dois grupos, chefiados por dois irmãos por nome [59] Kañerú e Kamé,
sendo que aquele saiu primeiro. Cada um já trouxe um número de gente de ambos
os sexos. Dizem que Kañerú e a sua gente toda eram de corpo fino,
peludo, pés pequenos, ligeiros tanto nos seus movimentos como nas suas
resoluções, cheios de iniciativa, mas de pouca persistência. Kamé e os
seus companheiros, ao contrário, eram de corpo grosso, pés grandes, e vagarosos
nos seus movimentos e resoluções. Como foram estes dois irmãos que fizeram
todas as plantas e animais, e que povoaram a terra com os seus descendentes,
não há nada neste mundo fora da terra, dos céus, da água e do fogo, que não
pertença ou ao clã de Kanẽrú ou ao de Kamé. [...] O que pertence
ao clã Kanẽrú é malhado, o que pertence ao clã Kamé é riscado. O
Kaingang reconhece estas pintas tanto no couro dos animais como nas penas dos
passarinhos, como também na casca, nas folhas, ou na madeira das plantas. [...]
Para os efeitos religiosos e feiticeiros cada clã só tira o material dos
animais e vegetais da sua pinta. [...] onça acanguçu foi feita por kanẽrú, um
membro deste clã não pode amarrar a carniça [...] No assalto como na dança, o Kañerú,
por ser mais disposto e resoluto, há de romper na frente, mas imediatamente
atrás tem de seguir Kamé, porque o Kañerú não sustentaria o que
ele iniciou”.
[3]
Conforme
Sérgio Baptista da Silva (2002, p. 190-1): “Vários autores concordam que há um
dualismo Kaingang, visível mais concretamente na organização social, que se
caracteriza pela existência das duas metades exogâmicas, patrilineares,
complementares e assimétricas, designadas como Kamé e Kainru-kré”. Na
realidade, as patrimetades kaingang representam apenas um aspecto – o
sociológico – de toda uma concepção dual do universo. Todos os seres, objetos e
fenômenos naturais são divididos em duas categorias cronológicas, uma ligada ao
gêmeo ancestral Kamé, e a outra vinculada ao gêmeo ancestral Kainru.
Principalmente, as metades são percebidas pelos Kaingang como cosmológicas,
estando igualmente ligadas aos gêmeos civilizadores, os quais emprestam seus
nomes a elas. Segundo os mitos, os gêmeos ancestrais estão em relação de
oposição e complementaridade um ao outro.
[4]
Em
Silveira, (2002, p.19), encontramos o seguinte relato: “Sua tribo vivia uma época de tranquilidade. Os homens pescavam e
caçavam, as mulheres plantavam mandioca, faziam farinha e cauim e criavam belos
cestos e cerâmica. Chegaram àquele lugar fértil, em sua peregrinação em busca
da Terra Sem Males [...]”
[5]
Para
Sérgio Baptista da Silva (2002, p. 192): “Deste modo, manifestados desde uma matriz
mitológica Kaingang que cria um campo
semântico de oposições a partir da vinculação a um ou outro herói mítico, pares
contrastantes marcam este dualismo, cuja abrangência engloba todo o cosmo,
incluindo entre outros, os elementos classificatórios no âmbito da natureza e
de sua exploração, as relações entre os homens, a organização social e ritual
do espaço, a cultura material, as representações sobre as características
físicas, emocionais e psicológicas, as diferenciações dos papéis sociais e os
padrões gráficos representados em vários suportes. Estes pares opositores
caracterizam-se por uma bipolarização contrastante, opositora e complementar,
modo como se apresenta o sistema de representações visuais Kaingang”.
[6]
Conforme
Ligia Simonian (1994, p.10): “No
século passado, muitos foram os massacres de Kaingang. [...] Particularmente,
em Guarita (RS), centenas de vidas foram abatidas por ervateiros e fazendeiros
não índios em 1832, em represália á resistência indígena frente à invasão de
seu território (Konkó 1930). Um pouco mais tarde, dezenas de inocentes Kaingang
foram massacrados por militares no nordeste do RS. Na década de 1860, os
indígenas liderados pelo cacique Doble foram contaminados com roupas infectadas
de varíola, que ele recebera de presente quando de uma de suas viagens à
capital da Província, sendo grande a mortandade. Além dos clássicos massacres
dos Xocleng de Santa Catarina e dos Xetá do Paraná, outros aconteceram,
especificamente contra os Kaingang do Rio Grande do Sul e São Paulo onde se
registra que a aldeia Colonia
Velha foi queimada com seus moradores no interior dos ranchos de capim, homens
foram torturado e assassinados, mulheres ‘pegas a cachorro’ e distribuídas
entre os combatentes e crianças entregues a fazendeiros para servir de criados’. Os Kaingang não encontraram outra
alternativa que a resistência como resposta ao processo de conquista imposto
pelos não indígenas”.
[7] Para Simonian (1981, p.74), “Tradicionalmente as políticas de
terras indígenas vêm sendo traçadas a partir de uma perspectiva que traduz
interesses de grupos ou de classes sociais que estão a manipular com o poder
político e econômico, no interior de uma sociedade tipo nacional, dominada pelo
capitalismo internacional. Aos indígenas jamais fora reconhecido o direito de
propor ou de simplesmente dispor do que construíram, delimitaram enquanto povo,
como habitat, como território”.
[8]
Segundo
Halbwachs (2011, p.51) “No primeiro plano da memória de um grupo se destacam as
lembranças dos eventos e das experiências que dizem respeito à maioria de seus
membros e que resultam de sua própria vida ou de suas relações com os grupos
mais próximos”. [...] As relacionadas a um número muito pequeno e, às vezes, a
um único de seus membros, embora estejam compreendidas em sua memória, passam
para o segundo plano.
[9]
Nas
palavras de Luís Fernando da Silva Laroque (2009, p.15), “Esta fluidez na fronteira étnica, isto
é, aceitando casamentos e/ou envolvimento sexual com pessoas fora do grupo,
encontra-se prescrita no próprio passado mítico Kaingang. Relacionado a isso,
Telêmaco Borba (1908, p.22),
informa que os gêmeos ancestrais Cairo e Came, casaram seus filhos e filhas
entre si, e os rapazes que sobraram vieram para a aldeia e desposaram mulheres
Kaingang”.
[10] Ainda de acordo com Laroque (2005, p.56), os
critérios para a escolha das lideranças Kaingang ao longo de sua história nunca
foram, necessariamente, pautados pela hereditariedade, mas sim pela valentia,
generosidade, redistribuição dos bens conseguidos, diplomacia para resolver os
problemas junto ao grupo e, principalmente, da segunda metade do século XX em
diante, cada vez mais pela habilidade política, dom da oratória, escolaridade e
pelo domínio dos códigos dos brancos. Sendo assim, a liderança além de ser
atuante fora da aldeia, também precisa atuar dentro da comunidade, a fim de
continuar sendo reconhecida pelo grupo. A participação política de mulheres é
algo bastante singular na história Kaingang, na medida em que a maior parte dos
documentos e material historiográfico produzidos refere-se quase que
exclusivamente a aspectos da organização política como sendo do universo
masculino.
[11]Conforme
Gonçalves (2011, p.36) “A
educação escolar indígena regular, no Brasil, vem obtendo, desde a década de
1970, avanços significativos no que diz respeito à legislação e com a
promulgação da Constituição de 1988 assegurou-se aos povos indígenas o direito
a uma educação escolar diferenciada. Se na atualidade existem leis bastante
favoráveis quanto ao reconhecimento da necessidade de uma educação específica,
diferenciada e de qualidade para as populações indígenas, na prática, entretanto,
há enormes conflitos e contradições a serem superados”.
12 Sobre
doenças, segundo Rogério Réus Gonçalves da Rosa (2006, p. 2), “Os Kaingang católicos da Terra
Indígena Votou-o diferenciam as doenças provocadas pelo rapto de seus supri (espíritos) pelos vẽnh-kuprĩg-korég (espíritos dos mortos)
que vivem no domínio “nűgme”/“mundo
dos mortos” — daquelas provocadas por um malfeito
enviado ao domínio “casa” da pessoa vitimada. No primeiro caso, a partir da lógica
do sistema kujà, através da técnica de êxtase do sonho, o kujà se desloca ao domínio “floresta virgem”, segue através de uma
estrada escura em direção ao nűgme,
nesse domínio procura convencer o kuprĩg da pessoa raptada a retornar com
ele para o nível terra. Tratando-se
do segundo, o kujà devolve ao
remetente o feitiço, a doença invisível que atormenta a vida de
seu paciente vitimado. Nas duas situações, a demora tanto por parte dos
familiares do doente na busca do serviço de um kujà, quanto desse mediador em partir ao domínio “nűgme” ou cozer remédio do mato pode acarretar a morte do indivíduo enfermo”.
Comentários
Orientada e orientador estão de parabéns pelo trabalho.