Triste fim de uma rã que amava a música







Sou uma rã, ou o que resta de uma.

Da família Ranidae, faço parte de uma grande diversidade de espécies que se distribuem por todo o mundo, com exceção do sul da África e da maior parte da Austrália oriental. Essa é uma identificação científica, logicamente. Antes de ser da família Ranidae, sou filha de minha mãe e meu pai. Minha mãe se chamava Ani e meu pai é desconhecido. Apareceu numa manhã de início de outono debaixo da ponte onde minha mãe costumava passar as férias e lá eu fui concebida. Minha mãe nunca mais viu meu pai, nem sabe quem ele era, na verdade. Apenas um ranídio qualquer.

Voltando a quem eu sou, ou era. Anfíbio anuro, o que quer dizer que comecei minha vida na água, onde fui concebida, e continuei na terra. Nessa lógica, voltaria para a água para encontrar um namorado e, quem sabe, também ter meus filhinhos. Ao contrário de outros animais que respiram por pulmões eu respirava pela pele, por isso não conseguia ficar exposta ao sol, preferia a sombra e os lugares úmidos. Embora eu não tivesse pulmões, já era adulta.

Minha língua era poderosa, forte, consistente. Com ela capturava meus alimentos que eram, invariavelmente, insetos e vermes.Eu já havia aprendido a emitir sons para atrair um namorado, aprendi com as rãs da vizinhança quando nos reuníamos nas poças perto do açude. Minha mãe sempre dizia para eu não ir longe, não sair sozinha. No final da tarde, até a noitinha, quando as estrelas já brilhavam no céu, nós treinávamos estalando a língua no céu da boca para criar sons homogêneos, que nos caracterizavam.

Na escolinha da vila aprendi que alguns parentes possuiam glândulas venenosas, denominadas pelos humanos como parotóides. Isso não quer dizer que eles sofressem ataque de rãs venenosas, que grudariam em seus cangotes,não, nada disso, o suposto veneno dos parentes seriam sensíveis apenas quando em contato com suas mucosas, o que quer dizer, que teriam que "respirar" rãs, o que é meio difícil de acontecer.

Minha avó nos contava que existiam grandes criadouros de rãs e que essas eram nossas parentes, porque no fim somos todos parentes, mas elas nasciam em um laboratório e eram usadas para estudos. Nunca entendemos bem isso, se era bom ou ruim, mas às vezes, eu pensava que gostaria de ter nascido em um laboratório.

Assim os dias passavam, lentos, muitos lentos. Perto de onde morávamos havia um açude. Ao redor desse açude havia um bar,um lugar onde as pessoas se reuniam para conversar, comer e beber. E cantar. Em algumas noites ouvíamos a cantoria dos humanos. Gostávamos disso, minha mãe dizia que eles eram do bem. Mas sempre me alertava que não deveria me afastar do grupo,nem deixar que me vissem.

Mas eu gostava de me aproximar para vê-los, com suas roupas engraçadas, com desenhos coloridos e ouvir a música que tocavam, era o que mais me atraía. Minha mãe me avisara, mas eu não resistia. Numa dessas noites em que me aproximei demais um humano, querendo brincar ou não, não sei, conseguiu me prender debaixo de um copo para me "olhar melhor", como o ouvi dizer aos amigos. Fiquei ali apavorada, mas esperava que me soltassem e eu poderia voltar ao açude, para as pedras, para a mata e rever minha mãe e meus amigos. Mas eles esqueceram de mim debaixo do copo. As luzes foram se apagando, a cantoria cessou, todos foram embora. No dia seguinte, o sol nasceu e aumentou imensuravelmente no céu onde antes havia estrelas. E esquentou, esquentou muito. Não senti fome, senti sede, muita sede. Espichei minhas perninhas e braços e tentei sair dali. Não conseguia. Meu coração acelerou, batia rápido,muito forte. Até que parou de repente e fique assim, espichada, fininha como uma rãzinha de desenho animado.

Alguém, um humano desumano, quem sabe, me pendurou pela perna como um troféu, um móbile, um enfeite. Agora,contemplo daqui do alto, seca e esturricada, o mundo onde ainda vivem minha mãe e meus amigos. 

E esse foi o meu fim.




Comentários

Anônimo disse…
Desculpe, mas o texto é seu mesmo?
Lyli disse…
Ahh, claro que é meu! Fiz a foto no Bar do Gago, em Novo Hamburgo, e tive a ideia de escrever o texto sobre ela, me colocando no lugar dela. Temos até afinidades, como a questão do pai, etc. Por que perguntou? Tenho treinado minha leitura e escrita....seá que não melhorei?
Anônimo disse…
Mil desculpas. Está sensacional. Mais um excelente conto. E bastante diferente. A questão ambiental contada por um anuro, muito bem bolada e. de quebra, mostrando o maior predador de todos os tempos, qual seja, o homem.
PS. De onde tirou tanto conhecimento técnico?
Lyli disse…
Minha área é português e literatura,então não tenho conhecimento técnico sobre biologia. Pesquisei sobre isso. Lembrei de um livro que li há muito tempo, Bufo e Spallanzani, do
Rubem Fonseca. Imagino que ele e todo escritor faça pesquisas para tornar seu texto verossímel.E, ontem, minha colega de trabalho que é bióloga me explicou sobre a forma de acasalamento das rãs. Obrigada pelos comentários. Em muitos momentos sou tão crítica em relação ao que escrevo que prefiro não postar, em outras me sinto melhor. Mas acho que é escrevendo que se escreve. Bem. :)
Anônimo disse…
Coincidência: também li. Uma espécie de romance policial, se não me equivoco.Mas não me recordo de nada.

Postagens mais visitadas