Duas Tábuas e Uma Paixão - Cena XV - Réquiem


"......................eu sento aqui no escuro, olhando a única realidade funda e verdadeira - eu vou morrer. O fim se aproxima e, se não chegar hoje, está cada vez mais perto - e eu tenho medo!

Não adianta prever males futuros - baratas apodrecem. A morte, a maior parte do tempo, é um sentimento desfocado, apenas um frio na espinha que dá de vez em quando , e se repele. Mas se a maior parte dos temores não se realiza, este se realizará, fiquem tranqüilos. E a certeza de sua aroximação me gela a espinha e estrangula - se estou só e se estou sem bebida. Coragem não adianta- ajuda apenas a não assustar os outros. Terbravura diante da morte nunca livrou ninguém da cova. A morte é igual, na covardia ou na valentia.

Quando olho a fresta da cortina qeu vai clarear minha cabeça está vazia, sempre- não há nada nela. Não nem remorso, arrependimento do mal praticado, do amor não dado, do bem não feito, o tempo malbaratado, perdido , pra sempre posto fora- nada na mente, nem mesmo o sentimento opressivo de que uma vida só não basta pra me livrar de tantos erros iniciais que me legaram, e me impediram qualquer felicidade. A garganta me apaerta e sinto que o vaizio que sinto é apenas o prólogo do vazio eterno que me espera, a extinção eterna e para sempre e um dia, para a qual viajo, da qual me acerco já bem mutilada, na qual me perderei sem salvação, sem volta, imentsamente. Não estar aqui e não estar em parte alguma eu não mereço, não quero 0 mas vem vindo- espero a asfixia a toda hora. Não há nada mais terrível do que a morte, não me meinta, nada mais verdadeiro, mais compartilhado, menos compartilhado. Eu vou sozinha.

Não é um pesadelo - eu não vou despertar: e estou apavorada. Não há tapeação, engodos, truque, que me salve agora. Minha religião é uma mentira, não me ajuda em nada. É apenas, sei agora, uma partitura de notas sem sentido, criada pra me iludir de que haverá uma vida eterna - e eu estou morrendo! E a filosofia, que me ensinou que nenhum ser humano deve ter medo de uma coisa que não vai sentir, me assusta mais, pois é esse o maior medo que sinto - o de não ser. Não ser, não ver, estar no silêncio sem remédio, nada a tocar em volta, nenhum gosto na língua, nenhum odor, perfume, cheiro-fedor, ao menos! -nada com que pensar um pensamento, nada pra amar, nemum fio de linha suspenso no infinito! Anestesia geral, profunda, universal, da qual ninguém voltou ao menos pra se queixar.

Todo outro pensamento é impossível. Só penso quando, como , e onde vou morrer. A interrogação é estéril, a resposta próxima - resposta que eu não vou ouvir. Mas o horror me mata antes, pois, viva ainda, eu já me vejo morta, e essa antecipção compensa em agonia e desfalecimento a ignorância da morte que eu terei já morta. Nunca ninguém me disse que deixar de sofrer doía tanto.


Lentamente a fresta ali clareia e o quarto readquire sua forma- um armário, um pente, uma cadeira, coisas todas comuns, bem conhecidas - e eu bebo mais um trago. Já há vozes na rua, motores nas garagens esperam um gesto, telefones se preparam, elevadores tomam alento, vidraçãs se põem a postos para refletir o sol, daqui a pouco...............mas me parece que o dia vai ser cinza outra vez. Eu me levanto e vou até a cozinha fazer café, como se tivesse dormido a noite toda.



Millôr Fernandes

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