Dor

Em alguns momentos, quando a dor é muito grande é melhor nos calarmos e ficarmos imóveis, tão quietos como se fôssemos uma pedra, sem sentir, sem perceber, sem elaborar questionamentos ou procurar respostas. Mas também chega um momento que precisamos falar, expulsar de dentro do peito o que nos machuca. Espanto e incredulidade foram os sentimentos que tomaram conta de mim quando tive conhecimento das primeiras informações sobre a tragédia em Santa Maria e que aos poucos foi tomando a forma de um enorme monstro devorador de corpos e de vidas na noite do dia 26 de janeiro de 2013, na boate Kiss. Vivemos em um tempo de incredulidades, ainda. Apesar de todos os dias vermos entrar em nossa casa, seja pela televisão, seja pela internet e jornais, o horror das guerras pelo mundo a fora, despertamos com grande espanto diante do horror logo ali, no coração do Rio Grande do Sul, a cidade que marca o centro do Estado. Meninas e meninos, jovens estudantes, cheios de sonhos, de projetos. Os pais e mães em casa imaginando onde estarão seus filhos na madrugada desse início de ano, com quem estarão, se estarão bem. Essa é uma prática comum para pais e mães que tem filhos adolescentes, que estudam fora de casa, que namoram, que estão aí para a vida, para o mundo. Já ouvi mais de uma mãe dizer que não dormia enquanto o filho não chegava em casa. Que tem combinados com os filhos; de ligar, de mandar mensagem. Com meu filho e filhas eu combinei que quando chegassem na madrugada, depois da balada, que fossem até a porta do quarto e se mostrassem, dissessem “mãe, cheguei”. Aí, eu relaxava e realmente dormia. Isso aconteceu inúmeras vezes, incontáveis vezes. Depois que eles saíram de casa para morar fora definitivamente eu entreguei a Deus. Rezava e rezo para que estejam bem, para que sejam protegidos e guardados de todos os males. Amém. E sempre pensava que conhecia meus filhos, sabia como os tinha educado, mas não sabia quem estava no mundo e onde morava o perigo. As mães não são diferentes por morar aqui no Rio Grande do Sul, no Nordeste ou na Patagônia. Mãe é mãe. Mãe segura o coração nas mãos quando pensa nos filhos que estão longe ou que estão fora de casa, nas madrugadas das festas. É o trânsito terrível, são os bêbados na direção, as drogas, a violência desmedida dos tempos em que vivemos. Mas, por mais que nossa imaginação temerosa de mãe possa prever tragédias, nenhuma mãe, nenhum pai imaginou tal tragédia para seus filhos e filhas. Santa Maria não fica no meio do nada. Não está rodeada de água, nem fica à beira de um precipício. Não sofreu chuva de granizo, não foi assolada por um vendaval, não foi um tsunami. Não há falhas geológicas onde a cidade está assentada. Ao contrário, é uma cidade com baixo índice de violência, uma cidade que abriga milhares de jovens de todas as partes, onde o conhecimento é valorizado e é construído. No entanto, todos os meninos e meninas que estavam na boate Kiss nesse fatídico 26 de janeiro e que anteriormente passaram por lá, não olharam para aquele espaço como um lugar de perigos, não pensaram sobre isso, não questionaram, não disseram não. Pagaram para estar lá. E muito caro. Músicos que fazem show pirotécnico, material inflamável e tóxico, sem portas de emergência, superlotação, extintores de incêndio que não funcionaram. Uma ratoeira. Um matadouro. Iguais a esse existem muitos outros ambientes. Lojas superlotadas de produtos inflamáveis, com janelas gradeadas, sem indicação de saída, cheias de gente. Cansei de entrar em lugares assim. Governador, prefeito, poder público, bombeiros, fiscais, donos da boate, músicos....quem mais pode ser responsável? Alguém disse que somos proativos no sofrimento, manifestamos, choramos, gritamos, mas não somos proativos na prevenção; nos calamos diante das barbaridades que presenciamos em nosso dia a dia. Um motorista que dirige falando ao telefone, que está acima da velocidade permitida. Um produto com a data vencida no supermercado, alimentos com agrotóxicos, um médico que não levanta nem nos olha quando nos atende e receita remédios controlados. Realmente, somos gado rumo ao matadouro. E ele, o matadouro, nos espera em cada esquina que iremos passar. Não sei como será o futuro de meus filhos e netos, da humanidade, mas espero, de coração, que essa tragédia não seja em vão, que outras possam ser evitadas.

Comentários

Anônimo disse…
Perfeito. Evidente que não sou mãe, mas assino embaixo.

Postagens mais visitadas