Na fila do Caixa

Ela saiu para caminhar e na volta passou no supermercado. Despretensiosamente, garimpou dois pacotes de coxas e sobrecoxas entre coxinhas da asa e peitos.Comprou, ainda, quatro laranjas, dois pãezinhos integrais, três sovados e uma garrafinha de água mineral sem gás, Versant, a sua marca preferida.Passou direto pelos bolos e foi para a fila do caixa.Observou os vários caixas e optou por entrar na fila em que havia três pessoas. Colocou a cestinha no chão e foi empurrando com o pé, tal qual o homem que estava à sua frente. Pensando na lei de Murphy ela ficou imaginando se sua fila demoraria mais do que as outras para andar. Esfregando o ombro esquerdo com a mão espalmada,fez uma careta de dor. Foi neste momento que o homem que estava na fila comentou que estava quente ali. Ela comentou que sim, realmente estava quente. Ele disse que achava que não havia ar condicionado no supermercado, ela disse que sim, que deveria haver. Olharam para os lados, para o teto e ele comentou que próximo às câmeras frias era mais fresquinho, por isso a certeza que não havia ventilação nos outros espaços. Ela comentou sobre a insegurança desses lugares públicos, considerando a tragédia de Santa Maria. Comentaram sobre o material usado nas placas do teto. Ele confessou que estará de aniversário na semana que vem, que não bebe, mas os amigos prometeram visitá-lo, por isso o fardinho de cerveja. O preço, noventa centavos a unidade. Hmmm, barato, ela disse. Observou a marca, Skin. Ele disse que gostaria de ter pego um pote de sorvete, falou que o Kibon estava em promoçao, mas o tempo que teria ficado no caixa derreteria,mudaria a consistência. Ela disse que também pensou no sorvete, mas também desistira.Silêncio. Ele, talvez pensando no que ainda poderiam falar. Ela observando as compras dele. Um fardinho com doze latinhas de cerveja e três pacotes de sabão de glicerina, em barra. Ela pensou no motivo para se comprar tantos pacotes de sabão de uma só vez.Ao dar um passo a frente e pegar a cestinha com as compras no chão, o braço dele roçou muito brevemente no dela. Um contato morno, gostoso. Enquanto ele pagava a conta de dezenove reais com um cartão azul do Banrisul, ela observou que ele tinha olhos verdes claros e um sorriso bonito. Cabelos muito curtos, alguns fios brancos, uns quarenta e oito anos, talvez cinqüenta. Ele disse para a caixa que queria trinta dias no cartão. Pediu para colocar as compras em duas sacolinhas reforçadas porque estava de bicicleta. Pegou as sacolas, deu tchau. Olhos que sorriem, ela pensou. Quando chegou a sua vez, também pagou com o cartão azul do Banrisul e pensou que eles têm algo em comum, afinal de contas, ambos tem o mesmo empregador.Ela saiu, passou pelo estacionamento de bicicletas e foi embora. Naquele instante, estava apaixonada. Sentia o prazer de saber que jamais o encontraria novamente, condição imprescindível para a permanência do encanto.

Comentários

Anônimo disse…
Que texto! Que belo texto!
Simples, verossímel, parece ter sido visto ou vivido pelo leitor.
Dizem que tudo, ou quase tudo, que se escreve, é um pouco autobiográfico ou totalmente autobiográfico.

Será?
Clau disse…
Confesso que este texto não me saía da cabeça, até que cheguei à conclusão que estava não apenas diante de um texto, mas de um conto. Sim, tem protagonistas, trama, cenas do cotidiano e cuja beleza reside exatamente na simplicidade dos protagonistas, da trama, nos fatos prosaicos expostos pelo autor.
Por exemplo, uma mulher sair para dar uma caminhada, pode parecer banal, vulgar. Mas é muito mais verossímil do que uma mulher que sai à procura de aventuras, com todas as complicações decorrentes.
Nada disto. Nossa heroína apenas caminha ao léu. Não é nenhuma neurótica carente à procura de companhia ou fantasias. Uma simples mulher em uma caminhada.
E que, continuando de forma simples, resolve passar em um supermercado, à procura de coxas e peitos de galinha morta, pão e água. Ou seja, na condição simples de simples mulheres em situação idêntica ou semelhante. Algo natural, normal e tal fato cativa o leitor, pois trata-se de algo simples, mas extremamente vivo.
O homem, o outro protagonista, também é pessoa simples, de limitadas posses, anda de bicicleta, compra a cerveja mais barata, em promoção. Aliás, por si, nem compraria cerveja, mas sorvete, eis que as cervejas são apenas para servir os amigos em seu (dele) aniversário. E por aí vai. O drama de escolher a fila, sempre achar que a nossa fila vai andar mais devagar, o encontro físico involuntário de ambos, as conversas mais que rotineiras de dois desconhecidos em uma fila de supermercado. E de toda esta simplicidade, surge algo totalmente simples mas extremamente complexo: o amor. Ela vê os olhos verdes dele, como se fossem um rio ou um mar passando em sua vida, confessa sua paixão e filosofa, de forma perfeita, que o fato de ele desaparecer de sua vida talvez seja determinante para manter o encanto.
Brilhante!
Bem, claro que estou sintetizando, mas acredito que este conto pode servir de base a um roteiro de filme, de um bom filme. Segundo os especialistas, um bom filme não passa de uma boa história, bem contada, escrita e interpretada, com direção, música e fotografia. Sei que posso estar sonhando, mas depois de várias releituras, parece que "vejo" o conto. O que me parece suficiente para servir de base a um filme.

Clau.
Lyli disse…
Obrigada pelo belo comentário. Quando estava na faculdade de Letras surgiu uma discussão sobre um texto ser autobiográfico ou não. Eu pensava que o texto, de certa forma, expressava os sentimentos do autor e que ele se colocava no texto, de alguma maneira. Os estudiosos da literatura dizem que existe o EU e o EU LÍRICO. e é este que se manifesta no texto. Continuo acreditando que o texto pode sempre ter algo de autobiográfico, mas o contrário também pode ser verdadeiro e o texto ser totalmente isento da essência do autor. Lembra do texto da rãnzinha? Eu me coloquei no lugar dela. Neste texto aqui, não me coloquei no lugar da mulher, mas falei de coisas que costumo fazer.
E o que diremos de Pessoa e seus múltiplos Eus?

Agradeço a deferéncia ao meu conto. Concordo contigo, é simples e bonito. Sem falsa modéstia.
Clau disse…
Segundo o saudoso Érico Veríssimo, uma obra de arte termina quando acaba e, a partir de tal momento, não pode ser modificada, acrescida ou diminuída pelo autor, pois já pertence à humanidade. Ou seja, o ponto final é o final, mesmo.
Concordo com ele e discordo de você, que chega ao ponto de mudar até o título. Na Fila do Caixa é muito mais condizente com o conto, algo totalmente simples e natural, como o conto. Encantada, desculpe a franqueza, revela uma certa afetação que inexiste no conto. É um termo muito chique (até bonito) e que não rima com as coisas simples e banais contidas no conto.
S.M.J.

Clau.

Lyli disse…
O (saudoso) Erico Verissimo e o escritor Clau Nacarato tem algo em comum, mas eu aproximo o último do Millôr pelo humor sarcástico e inteligente de ambos.. Me rendo à referência a obra de arte acabada, finito é finita. Quaisquer alterações ou acréscimos podem consistir em uma nova obra de arte. Então, retornei o título original. Sobre o "Encantada" refere-se ao fato da mulher não querer reencontrar o homem de olhos claros para não perder o encanto, aquilo que ela viu e que provavelmente não existe, apenas em seu desejo. Mas, no fundo, bem lá no fundo, ela gostaria de reencontrá-lo,afinal sofrer é viver. Mas como sabe que isso não acontecerá, prefere dizer que não quer que aconteça. Sabe a história da raposa e das uvas? É mais ou menos isso.
Obrigada pelas considerações!
Clau disse…
Impossível externar minha felicidade. Na Fila do Caixa é uma obra prima, que nos emociona. Tal como As Chaves. E, confesso, fico imensamente feliz, em você render-se ao pensamento do Érico e exibir sua obra de arte, tal como feita e acabada. Maravilha.

A nova foto do blog é simplesmente deslumbrante. Serra gaúcha, paisagem catarineta? É demais. Com certeza, é foto sua.

Clau.
Lyli disse…
Obrigada. A foto é em Praia Grande, Santa Catarina, quase na divisa com o RS. Esse lugar é no "pé" dos canions que, no Rio Grande do Sul, costumamos visitar na parte alta. Neste lugar da foto tem uma pousada que se chama Pedra Afiada - Refúgio Ecológico.
Clau disse…
Não é um lugar no qual se diz "quero morrer aqui", e sim "quero viver aqui".

Deslumbrante!

Clau.
Lyli disse…
Sim,um maravilhoso lugar pra se viver.

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