Testamento da Mulher Suspensa

Eis o que vos deixo
Um leve gosto
De renascer lembrada.

E um falso desejo de ser esquecida.

Que eu virei
Buscar a espuma da onda
que ficou para sempre por quebrar.

Beleza não me bastou:
o que quis ser
foram cetins de fogo
pétalas de cinza depois do abraço.

Nem flor invejei:
O que mais ilumina
vem de um oceano escuro.

Esperanças tive:
todas naufragaram
ante cansaços e remoros.

Procurei ilhas e mares:
só havia viagens,
travessia de água
nos olhos de quem amei.

Num mundo com remédios parcos
não clamei bravuras.
Injusto é viver
em perecível ser.

Menina,
aprendi a desenrolar tapetes
em rasos pátios voadores,
varandas maiores que o mundo
onde o tempo à nossa mão vinha beber.

Meus pequenos dedos
rasgaram céus,
mas o ensejo era largo:
em mim secaram
lembranças de um mar antigo.

Assim,
tudo o que sou
já fui
na criança que sonhou ser tudo.

Meus lutos, sem emenda, carrego:
viuvez de mulher
não vem de marido.

Vem do amor não mais sonhado.

Com a fragilidade de um riso
enfrentei ruínas e derrotas
e apenas a vida, calada, me calou.

Tudo falei com meus amentes.
Perante o amor, porém, não tive palavra.

O que a vida me restou:
pegadas alheias sob meus pés molhados.

Viver sabe quem ainda vai viver.

Deixo-me,
mulher que quase foi,
à mulher que nunca fui.


Mia Couto, em Tradutor de Chuvas.

Comentários

Clau disse…
Uma maravilha.
Ly disse…
Sim, maravilhoso.

Postagens mais visitadas