Solidão


Ele a deixou assim, num final de tarde, de um final de semana, de um final de mês. Ela não queria que fosse o presságio de um final de tudo.Aí, lembrou, não era final e sim início de mês. Havia uma esperança, talvez. Junho. Frio. A cama larga pedia mais um corpo. E ela já não sabia como era ter mais um corpo aquecendo o seu no inverno. Pensou nele, em algum lugar. Conversando com alguém, distraído. O pensamento, longe, nela. Que ele não tinha escrito nenhuma linha.Ficou preocupado, não gostava de sair assim, sem se despedir.

Sabia que ela estava lá, debaixo de lençóis e cobertores. As pernas encolhidas, de bruços, abraçada ao travesseiro. Sabia que ao acordar ela esticaria a mão e o procuraria. Ansiosa. Em vão. Até abrir os olhos e ver o que já sabia antes de abri-los. A luz no quarto a incomodava.Fechou os olhos.Pensou como seria bom se ele estivesse ali agora, a barba por fazer roçando na sua pele, traçando linhas, sulcos, arranhando. Os lábios desfazendo os traços com milhares de beijinhos, em todos os recôncavos, fazendo cócegas, extraindo risos, sumos. Ela se sabia faminta. Uma fome boa, quieta, calma. Sabia que precisava alimentar sua fome.

Ele a sabia nua, a pele morna, em alguns lugares quente. Sabia que se a tocasse, não iria mais.E precisava. E a contemplou, assim, toda coberta e nua. Adivinhava cada curva, cada reentrância, cada saliência. A cor dos mamilos rosados, assim calmos, tenros, lisos.Quando o tocava com a ponta do dedo,endurecia.Mas agora, na mansidão do sono,liso. Sabia onde suas veias pulsavam mais fortes, adivinhava o azulado dos fios sob a pele. Quis tocar seus pés, seus dedos pequenos.Não, ela acordaria.

Ela sentiu saudades, sempre sentia. E uma dor larga entrou no seu peito, se aninhou, ocupou espaços, expulsou a frouxidão da manhã, e se instalou. Ela acordou. Olhou o celular. Silencioso.Nenhuma mensagem. Nenhuma chamada.Nada.


Abriu a janela, assim nua, e sentiu na pele o ar gelado da manhã. Seus pelinhos se eriçaram. Vestiu um roupão e pantufas de cachorrinho e pensou como pudera comprar aquelas pantufas, infantis, enormes. Lembra que andara por várias lojas pra encontrar aquela pantufa que agora lhe parecia tão inútil, tão ridícula. Não era mais criança. A menina se fora há muito, ficará lá atrás, perdida em algum lugar.

Mexeu a cabeça com energia, como querendo afastar a melancolia daquele momento.

Vagou pela casa silenciosa.Ligou a tv. Alimentou a gata.Fez xixi.Lavou as mãos, o rosto.Escovou os dentes.Examinou o rosto no espelho. As linhas ao redor dos olhos se acentuando.Olhos. Olhos que não o vêem.Olhos que não o amam.Que não podem, ternamente, contemplá-lo. E aquela dor larga mexeu-se lá dentro. Quieta, ela falou em voz alta. Fica calma.

Ela sabia que a dor era sua companheira mais fiel. Ia, mas sempre voltava.Acabara se acostumando com ela e até gostando.Afinal, não a deixava.

Ele a sabia assim. Com a casa, as janelas abertas pra entrar o sol fraco da manhã no inverno gaúcho. Ele a sentia nas horas intermináveis de quem está só. E ficava, o pensamento longe, os olhos fixos, lembrando das suas palavras de amor, dos seus gestos mansos, da sua vontade férrea, do seu choro contido depois do delírio que chegava, enquanto ele dizia-lhe palavras loucas, palavras líquidas, suaves, quentes, fortes, mansas. E ele tomava conta do seu corpo, do seu coração, da sua alma, nestes momentos. E ela se desmanchava entre seus dedos, se espalhava na cama, se liquefazia, estremecia, e chorava. Ele não entendia. E ela chorava de amor. Assim, o sentia.


Mesmo assim ele se fora.Tinha que ir. E ela ficara juntando letras, tecendo palavras em extensas colchas de retalhos com que se cobriria nos seus dias de solidão.

Comentários

Postagens mais visitadas