As chaves



Gosto de estar em Porto Alegre. Gosto do burburinho das ruas, do por do sol do Guaíba, da agitação cultural. Gosto dos bares da Lima e Silva, embora não tenha ido a nenhum deles (ainda). Mesmo assim, gosto de passar e ver as pessoas sentadas, conversando, bebendo, confraternizando.
Por outro lado, quando vejo pessoas dormindo nas ruas, enroladas em um cobertor velho e sujo, não consigo deixar de pensar que elas têm (ou tinham) uma família, pai, mãe, irmãos. Ou não. Mesmo que não tenham, como diz a minha mãe, "não são filhos de carucaca", embora eu não saiba exatamente o que quer dizer isso. Elas nasceram de uma mãe, isso é certo, embora possam ter tido apenas mãe durante a vida toda.

Mas, é nessa Porto Alegre e nesse domingo ensolarado de novembro que aconteceu um fato inusitado, desses que a gente ouve falar mas que nunca nos aconteceu.
Indo para o brique da Redenção, dei uma paradinha na praça da Matriz para tomar água e descansar à sombra das acácias e jacarandás, quando uma moça aproximou-se e perguntou se eu ia ficar por ali. Respondi que ia ficar um pouco, mas não muito. Ela explicou que alguém deixara um molho de chaves sobre o banco próximo dali, onde ela estivera sentada e que ela não queria ir embora deixando as chaves; alguém poderia pegar e o dono não mais as encontraria. Percebi que ela estava aliviada em passar para mim a responsabilidade sobre as chaves. Ela explicou que provavelmente alguma mulher teria deixado cair da bolsa e entraria em pânico quando percebesse a perda. Que poderia ser alguém que tivesse estacionado o carro por ali e só notaria quando fosse embora. Perguntei se não daria para identificar a marca do carro pela chave, ela disse que não. Enfim, ela foi embora e eu me aproximei do banco, sentei ao lado das chaves. Junto tinha um chaveiro escrito "enfermagem". Várias chaves, todas de portões e portas de casa, nenhuma de carro.Além de várias chaves comuns, todas de portas externas. Deduzi que a pessoa deveria, provavelmente, morar por ali. Além disso, dois cortadores de unha de aço inox, exatamente iguais. Pensei que as chaves seriam de um homem, já que mulheres não cortam a unha com cortadores, elas lixam, tiram a cutícula e pintam, embora isso seja regra, há exceções. A menos que essa mulher seja uma enfermeira, o que faz com que tenha sempre as unhas bem cortadas e sem esmalte, o que explicaria um cortador de unha. Mas dois? Um talvez já não corte tão bem, então tem junto um novo cortador de unha, ambos da mesma marca; Unhex.
Observei as pessoas ao redor, uma mãe brincando com o filho na pracinha, um morador de rua deitado junto a um monumento, um casal sentado mais adiante, outro casal passando com um cachorrinho, um skatista, dois rapazes com camisa do Inter conversando. Nenhum guarda, nenhum ponto de táxi próximo. A moça que me passou a responsabilidade de guardiã das chaves já ia longe, certamente aliviada por se livrar do compromisso auto imposto. Pensei em levar as chaves comigo e deixar o número de telefone sobre o banco. Nisso aproximou-se um senhor e sentou-se no banco em frente ao meu. Eu perguntei se ele ficaria ali por muito tempo ao que ele respondeu com outra pergunta; por que? Expliquei o caso da chave e disse que iria deixar pra ele a função de cuidar das chaves, eu teria que ir embora. Ele disse que se fosse uma mulher, cuidaria, mas das chaves não. Pedi uma caneta emprestada e escrevi num pedaço de papel de propaganda que estava por ali, a seguinte mensagem: "Estou com as tuas chaves" e o número do meu telefone. Deixei em cima do banco com uma pedra em cima, guardei as chaves na bolsa e fui embora. O "senhor" queria guardar mais do que as chaves, então não dei muita bola pra ele.
Fui embora pensando se teria feito a coisa certa. Quantas pessoas ligariam para o meu celular passando trotes? Será que a pessoa que perdeu a chave retornaria àquele banco? Dobrei a esquina, andei uma quadra e senti que minha bolsa estava pesando muito. Senti que aquele peso todo era das chaves de alguém, da vida de alguém, das portas que só deveriam se abrir para essa pessoa, a enfermeira ou enfermeiro, ou estudante de enfermagem, ou quem quer que fosse. Não era da minha história, da minha vida, não era a minha carga.

Voltei ao banco, peguei o bilhete que, provavelmente ainda não havia sido visto por ninguém, coloquei no lixo, devolvi a pedra ao chão. Do outro lado da rua (sempre do outro lado da rua) tem a sede de um partido político e mesmo sendo domingo, um pintor varria pacientemente a calçada onde havia vestígios de tinta e reboco descascado. A porta estava aberta, entrei e bem próximo havia uma mesa, vários blocos e papeis para rascunho e uma canetinha hidrocor vermelha. Peguei um pedaço de papel e escrevi "Estas chaves foram encontradas no banco em frente, na praça". Saí como entrei, quieta e sem ser vista. Aliviada, não deixei a chave na rua, não trouxe comigo. Alguém que a encontrasse, certamente se sentiria responsável por ela.
E o dono ou a dona das chaves, a essa altura da noite, já deve ter encontrado um chaveiro para, pelo menos, poder entrar em casa.
Lamento, é um mistério que não desvendarei, mas o que seria dos mistérios se todos fossem desvendados? Não existiriam. E a vida, sem mistério, não tem graça.

Comentários

Anônimo disse…
Excelente. Um conto, cheio de chaves e de um porto, alegre, ainda que triste.

PS. Tiraram uma foto do blog e fiquei sem saber onde estaria a arrogância (oh, santa ignorância).
PS2.Santa??? Maldita ignorância me parece mais adequado.

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