Nas profundezas do jardim

Minha amiga Paula resolveu reformar a casa. Os pedreiros chegaram de mansinho com pás, talhadeiras, furadeiras, martelos e carrinhos-de-mão. Combinados com o Angelo, marido de Paula, puseram-se a quebrar paredes e remodelar a casa, construída há dez anos, à beira do Canal de São Gonçalo.

Reforma sempre demora mais do que o previsto. Assim, os dias foram passando, a poeira cobrindo tudo, móveis fora do lugar e os pedreiros chegando às 7hs e saindo às 18hs. Sem concluir a reforma dentro de casa, passaram para o jardim. Com a necessidade de se fazer uma drenagem da água no terreno, que é próximo ao rio, os pedreiros iniciaram a traçar profundos e estreitos canais no jardim.

Ao chegar em casa, no final da tarde, os pedreiros relatavam os progressos do trabalho diário. Paula e Ângelo já estavam ficando exasperados com todos os buracos, tábuas pelo chão e poeira, mas essa é normalidade de uma reforma. No entanto, numa dessas tardes, Paula chegou em casa e foi a vez dos pedreiros mostrarem-se exasperados:
- Dona Paula, a gente tava cavando a terra lá no buraco e encontramo uma coisa estranha. E relataram:Ao aprofundarem a escavação, num dos tuneis abertos no meio do terreno, encontraram uma laje. Não era uma laje natural, dessas que nascem e crescem desordenadamente como as magnólias do Machado de Assis. Ao contrário, era uma laje lapidada por mãos humanas, retangular e de cor alaranjada. Debaixo da pesada laje havia um plástico preto e grosso, enrolado como se fosse um tapete, em torno de si mesmo. O rolo media, aproximadamente, 1,80cm. Desenrolaram o "tapete" de plástico preto e um odor fétido empestou o ar. Cobriram os narizes com as camisetas sujas e espiaram para dentro do rolo. Roupas podres e água suja. E fedor. Enrolaram novamente o plástico e deram um fim naquilo.

Paula achou graça do relato dos pedreiros, mas tentou levar a sério.
- Vamos chamar a polícia, quem sabe é um corpo?
- Não, Dona Paula. Nóis já botemo lá pras banda do rio.
Minha amiga insistiu, mas eles desconversaram.

Quando ela me contou essa história logo pensei: quem seria o morto ou a morta? Seria humano, inumano? Seria um desumano? Enterrado há mais de dez anos, essa reforma era a esperança, quem sabe, desse cadáver desconhecido ser, finalmente, encontrado e reconhecido.

Quem desapareceu há mais de dez anos na região do Canal de São Gonçalo, em Pelotas? Era homem, mulher? Moço, velho? Era alto, isso é certo. Das roupas, os pedreiros não informaram quase nada. Como o corpo estivera tanto tempo dentro d'água, literalmente desapareceram, corpo e tecidos, restando fragmentos de trapos apodrecidos.

Certamente Watson saberia dizer quem era o defunto, o que fazia, como morreu e até o que comeu em sua última refeição. Mas não sou Watson, embora continue a pensar no morto, enterrado tão profundamente naquele solo arenoso e úmido, tão solitário e anônimo nas profundezas do jardim da minha amiga.



(Os nomes e lugares foram alterados para preservar a segurança dos vivos)

Comentários

Anônimo disse…
Dizem que reforma dá azar. No caso, mais que confirmado e exagerado.
Anônimo disse…
Tirante a tragédia, não deixa de ser interessante como início de romance policial.
Anônimo disse…
Cadê o terceiro comentário que estava aqui?

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