O homem que não era


Ele a conhecera no parque da Redenção, numa manhã de domingo ensolarada. Fazia suas corridas ali no domingo cedo porque não corria o risco de encontrar nenhum amigo ou conhecido e assim ter que interromper sua marcha e se desgastar em conversas sem sentido. Normalmente era o "oi, tudo bem, quanto tempo, precisamos nos encontrar para um chopinho" e depois, nunca mais, até que eventualmente se reencontrassem ali, no mesmo lugar. Mas naquela manhã de domingo foi diferente, ela estava fotografando no parque,num momento e lugar não apropriado para moças solitárias com uma câmera na mão. Ele logo pensou "vai ser assaltada". E quase com arrependimento se aproximou dela e disse, moça, com licença, mas é perigoso fotografar aqui no parque de manhã cedo. É um local onde dormem pessoas e nem sempre são as mais educadas. Ela pareceu cair das nuvens e contou a ele que era do interior, estava fazendo um curso de extensão na Ufrgs e aproveitava para conhecer melhor o parque, já que só conhecia o entorno do brique.    Ele ofereceu-se para acompanhá-la, se quisesse, assim teria certeza que ela ficaria em segurança. Ela agradeceu desconfiada, guardou a câmera e afastou-se com passo firme, sem olhar para trás. Nos dias seguintes ele voltou ao parque, como sempre e não a encontrou mais, até que apagou a ideia de encontrá-la.  No domingo seguinte lá estava ela, desta vez com uma térmica debaixo do braço e uma cuia na mão. Estava sentada sobre um pedaço de pano colorido e lia um livro. Ele não pode deixar de notar como toda ela parecida arredondada, não que fosse gordinha ou até mesmo obesa, mas seu corpo todo seguia linhas arredondadas, que se inclinavam umas às outras. Joelhos, tornozelos, queixo e até o rosto parecia o de uma madona italiana. Uma índia, ele pensou. Ela parece uma índia, mesmo que os cabelos estejam presos. Os olhos amendoados, cor de mel, a boca cheia. Mesmo pensando que não poderia, que não deveria, não resistiu e aproximou-se meio comentando,  meio perguntando onde estava a câmera. Ela pareceu não reconhecê-lo logo, mas em seguida abriu um sorriso e disse que havia resolvido seguir seu conselho e não levar a câmera ao parque. Um livro e uma cuia de chimarrão não seriam alvo de ladrões, certamente.
Ele perguntou como ia o curso, se estava gostando de Porto Alegre e ela respondeu que sim, as aulas eram maravilhosas e a cidade não parecia o bicho papão do início. E ele, caminhava sempre por ali....Sim, e num esforço de imaginação ele foi contando a ela sobre uma pessoa que gostaria de ser ou de ter sido. Era separado, trabalhava numa grande multinacional como diretor de vendas e isso fazia com que viajasse muito, quase o tempo todo. Sim, ele era formado em direito mas não exercia a profissão. Não tivera filhos (nesse momento ele pediu perdão a Deus em silêncio) mas gostaria de ter tido. A sua ex mulher era uma megera, uma pessoa horrível. Conversaram essa e muitas outras manhãs de domingo até que ele pegou na mão dela e a beijou apaixonadamente, ao que ela correspondeu. Ele morava sozinho, explicou,mas não poderia levá-la a conhecer seu apartamento porque havia sido arrombado no carnaval e seus pais estavam lá. Quando ela tocou novamente no assunto, estava em obras. E mais e mais obras. Impossível, dizia ele, nem estava ficando em seu apartamento. Primeiro trabalhava na empresa A, depois de um tempo ela voltou a perguntar e ele disse que era na B. Putz, esquecera  desses detalhes. Ela pediu a ele que escrevesse um comentário sobre um trabalho que ela estava fazendo pra faculdade, e notou que ele escreveu rocho, assim mesmo, com ch. E que dizia "nós se encontramos". No início ela queria acreditar no que ele dizia. Depois fazia de conta que acreditava. Gostava dele. Pensou que poderia conversar e dizer que ela também em um momento muito difícil da vida dela pensou que gostaria de ser outra pessoa, negou quem ela era, mas ele foi grosseiro, não queria conversar. Sempre que ela o confrontava com suas próprias mentiras ele desviava o assunto ou era agressivo com ela. Sumia por dias e dias. Quando ligava pra ela era sempre como se tivessem se despedido uma hora atrás, voz doce, carinhoso. Então, num domingo de manhã,ela foi ao parque com a câmera na mão, fotografou os mesmos lugares onde os dois estiveram tantas e tantas vezes conversando e depois de olhar as imagens uma por uma ela foi deletando da câmera, desfragmentando-as tornando-as metades, quartos, terços, fragmentos, partículas e ao final não restou nenhuma imagem na câmera ou no seu coração, apenas milhares de pixels invisíveis no ar.  E ele, o homem que não era, deixara de existir.

Comentários

Clau disse…
Este conto revela uma alta complexidade psicológica, de personagens e trama. Um aparente encontro de casal em um parque, casal que poderia se aproximar, apaixonar e viver feliz para sempre.
Mas, tudo é dúbio, discutível e passível de interpretação. A mulher em um momento está com uma câmera, em outro com cuia e livro, fazendo um curso na Federal e com evidente interesse no homem. Se assim não fosse, por que voltaria tanto ao lugar onde poderia encontrá-lo? A descrição física dela (cheinha, arredondada, etc.) dão conta de uma mulher extremamente atraente (uma mocetona, como diria Bento Santiago sobre Capitu). E cria-se uma espécie de volúpia recíproca entre os personagens, que culmina com um beijo apaixonado do homem, plenamente correspondido pela mulher. Claro que antes disto, houve conversas, aproximação, enfim todo um processo que levaria ao beijo apaixonado.
A esta altura, o leitor espera a consumação total, com a continuidade do beijo, com tudo que sói acontecer.
Mas, apesar de a mulher continuar linda, atraente e voluptuosa, o homem vai lhe corroendo o ardor e desejo, com mentiras, invenções, tentativas de explicação inexplicáveis, erros crassos de ortografia. Um destes erros (rocho, com ch) constitui uma espécie de ponta do iceberg que provocaria um esfriamento progressivo de tudo o que ela sentia (ou achava que sentia). O mais contundente, no entanto, é a recusa sistemática dele em levá-la ao seu apartamento (dele). Ora em obras, ora ocupado pelos pais e a cada vez novas desculpas. Parece claro que, após o beijo apaixonado de ambos, no apartamento dar-se-ía a sequência inevitável e, de certa forma, óbvia. E nem se fala de alternativas ao apartamento, que sempre existem. Inexiste um ou mais beijos, sinal evidente do esfriamento mútuo, as mentiras dele sobre empregos, as desculpas de que estava quase sempre em viagem e outras contradições foram subtraindo dela qualquer elã ou ímpeto na continuidade de algo que se mostrava insustentável. E, ao final, surge a idéia de que ele, como inicialmente se mostrara, na realidade nunca existiu, um homem que, sem nome, parecia ser um colecionador de heterônimos de personalidade, qual seja, várias pessoas sem ser nenhuma delas.
E, no final do final, desconstrói todas as imagens fotográficas dos lugares frequentados e do homem que nunca teria existido.
Obs. É o título de um filme muito antigo, com Clifton Webb, "O Homem que Nunca Existiu" ou, no original, "The Man Who Never Was." Mas, com um roteiro totalmente diverso.

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