Um bem


Eu tinha uns 9 anos quando ela veio morar na casa ao lado.E ela, 15 ou 16, não sei ao certo.Mas sei que estava bem mais adiantada que eu na escola e todos os dias eu a esperava na porteira pra ajudar a carregar os livros.Ela chegava cansada, suada, faminta. Eu também estudava de manhã,mas bem pertinho de casa,numa escola rural e ela não, estudava em uma escola na cidade.Estudava pra ser professora, ela dizia. Eu adorava vê-la de uniforme.Camisa branca,saia azul marinho e meia branca até abaixo do joelho.Ela chegava,tirava os sapatos com a ajuda do pé mesmo e atirava-os para o alto e deitava no sofá.Às vezes adormecia sem nem almoçar.Eu ficava um pouco por ali, gostava de olhar pra ela enquanto dormia,embora ela nem desconfiasse disso.Outras vezes eu almoçava com ela, de novo, só pra ficar ouvindo-a contar sobre a aula naquele dia.Eu me achava muito importante, pra mim ela era como se fosse uma deusa e eu um simples mortal.Quando ela ia pro quarto trocar de roupa, eu ia junto e ela dizia Clauzinho vira pra lá que quero tirar a roupa.Eu cobria os olhos ou virava, louco pra espiar, louco pra ver.E ela nem esperava eu me virar direito, já ia tirando.Por isso, muitas vezes eu via a barriga, o umbigo, um pedaço do seio, mas não conseguia ver um bico do seio porque a esta altura eu já tinha virado de costas. Eu já havia visto uma mulher nua numa revistinha que meu irmão trouxera pra casa e estava debaixo do colchão.Sempre que ele não estava eu pegava e ficava olhando. Nestes momentos algo acontecia comigo e eu ficava formigando.Não entendia que já era o homem querendo habitar em mim. Ela adorava ler gibis e eu, que tinha pilhas de gibis a cada dia levava um gibi novo pra ela ler e às vezes líamos deitados no chão, o mesmo gibi.Ela não gostava muito do Flash Gordon, preferia o Tex.Eu não entendia esse gosto.Às vezes brincávamos de casinha.Eu arrumava pedras pra fazer o fogãozinho debaixo de uma mangueira.A chapa era uma lata de azeite aberta e batida nas bordas.As panelas eram latas de sardinha.A gente fazia fogo de verdade e cozinhava folhas.Ela tinha duas bonecas, a Vivi e a Karina.Eu queria ser marido,mas ela dizia que eu era o filhinho, o guri que faltava na família. As bonecas ficavam sentadas e a gente varria o chão da "casa" com uma vassoura improvisada com macega amarrada num pau. De casa ela levava um vidrinho onde colocava flores.Guardanapos e paninhos faziam a vez de toalha. A gente gostava de fazer castelos japoneses encaixando espinhos da roseira.Quando ia pra casa dela eu já levava, enrolado num papel de pão, dúzias de espinhos que tirara da roseira da minha mãe, pra gente brincar. Ali, à sombra daquela árvore ela me contava que um dia teria a sua própria casa, que teria filhos, muitos filhos, um marido bonito, carro, e que seria muito feliz. E que seria professora e usaria sapato de salto.Eu não tinha dúvida alguma de que ela teria tudo o que quisesse e a admirava por ter tantos sonhos. Seu pai, eu sabia, havia ido embora anos antes. Eu também não tinha pai, mas era muito feliz.Tinha minha mãe e meus irmãos,tios,primos.Na minha casa era sempre uma festa quando nos reuníamos. Um dia aconteceu uma coisa ruim na minha família, muito,muito ruim e eu fui morar com meus tios e nunca mais a vi. Não sei se ela casou, se tem filhos, se é feliz. Imagino que seja professora e use sapato de salto. Quero acreditar que seus sonhos tenham se realizado.Tempos atrás voltei àquela casa onde morávamos e nada existe que lembre aquela época.Nem as árvores, nem as pedras, as roseiras, a porteira, nada. E aí eu pensei que o passado ficou em algum lugar dentro da minha memória que viu quase tudo, mas nunca esqueceu aquela menina que fez de mim um homem.

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