Camafeu




A minha avó morreu sem ver o mar. Suas mãos, arquipélago de nuvens, Matavam as galinhas com asseio; o mar também dá sangue quando o peixe Vem arrastado ao mundo (o nosso mundo); no entanto no mar é muito diferente. As gaivotas, mergulhando, indicam o caminho mais curto entre dois sonhos Mas minha avó era feliz e doce como um nome pintado em uma barca. Sua ternura eterna não temia a trombeta do arcanjo e o Dies lrae: Sentada na cadeira de balanço, olhava com humor os vespertinos. Sua figura pertenceu à terra, porém o mar, rainha impaciente, 0 mar é uma figura de retórica. No porto de Cherburgo, há muitos anos, Ouvi na cerração o mar aos gritos, mas minha avó jamais ergueu a voz: Penélope cristã, enviuvada, fazia colchas de retalhos fulvos. 0 mar é uma louça que se parte contra as penhas, enquanto minha avó Fechava a geladeira com um jeito suave, anterior às geladeiras. Igual ao mar, os dedos da manhã a despertavam num rubor macio; Pelo seu corpo quase centenário a invisível vaga do sol se espraiava, A carne se aquecia na torrente dos constelados glóbulos do sangue, As pombas aclamavam outro dia da crônica do mundo (o nosso mundo) E de uma criatura que se orvalha em suas bodas com a terra dos pássaros Matutinos, das frutas amarelas, da rosa ensangüentando de vermelho 0 verde, o miosótis, o junquilho, e em tudo um rumor fresco de águas novas, Um verdejar de abóboras, pepinos, um leite grosso e tenro, e minha avó Com tímida alegria indo, vindo, a prever e ordenhar um dia a mais, Assim como as abelhas determinam mais 24 horas de doçura. E enfim no litoral destes brasis, o mar afogueado amando a terra Com seu amor insaciável, dando um mundo ao mundo (o nosso mundo) E a gravidade intransigente do mistério. Mas minha avó morreu sem ver o mar.


Paulo Mendes Campos

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